setembro 26, 2010

Festival de Cinema do Rio: Estigmas, de Adán Aliaga


A novela gráfica "Estigmas", coautorada por Mattotti (com Piersanti), não está entre as melhores obras do desenhista, contando, estranhamente sem emocionar, a história de redenção de um bêbado misantropo. O melhor do álbum é, como quase sempre, o traço de Mattotti, sujo, claustrofóbico e esquizofrênico. A grande dúvida do Zé José, por exemplo, era saber como alguém conseguiria transferir a obra pro cinema quando o grande destaque era justamente a arte tão pessoal, incapaz de ser recriada digitalmente na tela grande como virou moda depois de Sin City.

Pois quanto a isso o valente editor da Zé Pereira pode ficar tranquilo: o diretor espanhol Adán Aliaga ressuscita o preto e branco anamórfico, cujos amplos espaços monocromáticos reforçam a solidão dos personagens desde "Se meu apartamento falasse", e recorta a tela com altos contrastes, interiores atulhados e exteriores fantasmagóricos pra transmitir o mesmo clima dos quadrinhos de Mattotti. Visualmente a fita, mesmo projetada digitalmente, é hipnótica. Entretanto, Aliaga descarta a narração em off do protagonista, bem como quase todos os seus diálogos. O resultado é que a produção ganha um tom extremamente lento e solene, para que fique claro aos espectadores desde o início que eles estão vendo algo I-M-P-O-R-T-A-N-T-E. O próprio bêbado isolado, agressivo e solitário não é tão completamente solitário e desde o início é deixado bem claro que, no fundo, ele é gente boa, inclusive sendo amigo de crianças, a quem vende lagartas. Sim, lagartas, isso mesmo, uma das metáforas que Aliaga usa para deixar bem clara a relevância do filme. Afinal, lagartas se transformam em borboletas e uma menina pergunta ao estigmatizado se aquelas larvas sofrem muito quando fazem sua metamorfose.

Mas existe outro motivo para Aliaga descartar a narração em off - ele inverte a ordem de alguns episódios e, curiosamente, para quem se deu ao trabalho de levar quadrinhos pra tela prateada laboriosamente criando com sua cinematografia um clima semelhante ao da história original, não compartilha da ideia da possibilidade de redenção através do amor a toda a humanidade. Mais cínico e niilista, Aliaga parece em alguns momentos perder a compreensão do cerne da história, e escorregar alguns personagens para velhos clichês, não só no protagonista menos misantropo como na namorada dele: na obra original Lorena é uma menina meiga e relativamente ingênua, enquanto na fita ela descamba para a velha fantasia de diretores de cinema, a linda mulher jovem, atirada, independente, sexualmente agressiva, anticonvencional e inteligente, estranhamente dedicada a reformar homens esquisitos e retraídos.

Com belos visuais, um ator que é os cornos do protagonista do quadrinhos e um ritmo bem mais lento do que o do gibi, mas nem por isso entediante, Aliaga comete mesmo seu grande erro no final, ao negar a redenção do estigmatizado, tornando praticamente a história toda sem relevância, pois, afinal, qual o crescimento que os estigmas proporcionam ao sofrido bêbado se ele não descobre que nenhum homem é uma ilha, completo em si mesmo, mas parte de um continente maior?

Ao fim, o diretor espanhol Adán Aliaga conjura belíssimas imagens (principalmente Marieta Orozco) com um orçamento aparentemente modesto, mas mostra a mesma incompreensão que na história acarreta o desastre ao estigmatizado, antes que ele reconsidere sua percepção do mundo e alcance sua redenção. Como o protagonista, Aliaga avançou, mas ainda terá que cumprir um longo ciclo de expiação antes que alcance a paz iluminada.

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