setembro 08, 2010

Retrospectiva do Blogue: Alteridade e Neoliberalismo

Quanto desse povo quarentão que acha que tinha que matar esses pivetinhos de rua ajudou a fazer de CAPITÃES DE AREIA o grande sucesso teatral jovem no verão de 1982/1983? Será que se os pivetinhos fossem todos parecidos com Alexandre Frota e Bianca Byington, protagonistas da peça, eles mudariam de idéia?

Há coisa de dez anos atrás, fui arrastado por uma menina que eu estava pegando para ver a adaptação de Gabriel Vilela para MORTE E VIDA SEVERINA. Ela fazia questão de assistir porque era parente distante do João Cabral de Mello Neto (um ou dois "l"?). O ator que fazia Severino era um jovem adulto, malhadaço, o que dava para ver porque seu figurino era apenas um saiote mezzo aborígene mezzo africano e uma espécie de touca com a mesma inspiração. O sujeito andava com um grande cajado e sua dicção era em tom profundo e épico. Gabriel Vilela deve ter adorado os livros do Joseph Campbell e, em sua concepção, o protagonista de João Cabral, em vez de um retirante miserável e subnutrido, era um herói em busca da verdade.

Após quase duas horas de entediante espetáculo (o sotaque surfista do Severino não ajudava muito e os peitinhos da deusa-rio Capibaribe - não pergunte - não foram o suficiente para aliviar), saímos à rua. Posso contar de positivo da moça que ela também não gostou do musical, mas tivemos a chance de ouvir ao nosso lado um pessoal mais velho comentando como apreciara a peça, com uma mulher ressaltando que tinha visto outra montagem muitos anos atrás, mas "nem se compara, era um horror, todo mundo esfarrapado, todo mundo se arrastando pelo chão"...

Quando moleque, li um clássico de psicologia para adolescentes, NUNCA LHE PROMETI UM JARDIM DE ROSAS, mostrando o início do processo de cura de uma garota esquizofrênica judia. Um dos momentos interessantes do livro era quando a protagonista contava que, conversando com uma amiga, falou que fulana parecia estar num purim (ou coisa parecida, eu não conheço tão a fundo a cultura judaica) e sua amiga não entendera; só então se tocara que sempre percebera todas as pessoas à sua volta como judias, como tendo a mesma criação e cultura que ela tivera.

Na verdade, isso se aplica praticamente a todos nós. Eu, enquanto branco (para os padrões brasileiros, é claro), sempre pensei em negros como brancos com mais melanina. O conceito "preto de alma branca" vem dessa idéia. Nós não os enxergamos como sujeitos com outra cultura, que são encarados de forma diferente pelo mundo e, portanto, encaram-no também de forma diferente. E assim agimos também em relação a pobres - eles são iguais a nós, só que com menos dinheiro.

É assim que adolescentes de Zona Sul podem se identificar com meninos de rua da Salvador dos anos 30, 40. Os espectadores vêem aquela garotada que não tem pais para encher o saco, que tem desprezo pelo "sistema", que não precisam trabalhar para viver, mas usam seus talentos e astúcia superiores para conseguir uns trocados, e passam o dia à toa com os amigos, namorando, transando e fazendo festas e pensam "sou eu! Essa é a vida que eu gostaria de ter!". É assim que Gabriel Vilela pode pegar um clássico da miséria nordestina e fazer uma saga épica de alguém bestificado com Campbell. É assim que podemos eventualmente chegar a pensar que se esses pobres todos resolvessem estudar, seriam alguém na vida.

Mas tentar negar esse dito de que "pobre é pobre porque quer" costuma ser acompanhado de uma história de que "meu pai veio do interior de não-sei-onde, vendia verduras que catava no Morro do Chapéu, depois abriu uma lojinha (...)". Meu amigo Carlos Henrique, de direita, neoliberal e tudo, certa vez me explicou o que achava ser o motivo para a diferença de personalidade entre o Romário e o Ronaldo Fenômeno - o Ronaldinho é ex-suburbano pobre, o Romário é ex-favelado. A diferença pode parecer mínima pra turma da Zona Sul, mas pra quem cresceu em Valqueire como o Carlos (e estudou e foi ser alguém na vida), é imensa. Pobre e miserável são duas coisas muito diferentes. Têm culturas diferentes. Aprendem a ter objetivos de vida diferentes. São diferentes. Como homens e mulheres, negros e brancos, pivetes de rua da Salvador dos anos 40 e Alexandre Frota e Bianca Byington. O povo que viu aquela peça cresceu, deixou a rebeldia pra trás, formou família e hoje fica preocupado com esses pivetinhos que estão vivendo de verdade o sonho que esses senhores de classe média tinham na adolescência. Só que são mais feios e sujos.

P.S.:

1. Pra fazer Morte e Vida Severina, Gabriel Villela, que era o administrador do Teatro Glória, onde a montagem estreou, recebeu uma grana de patrocínio, pegou o enorme elenco e foi passar uma temporada no Nordeste, para que todos pudessem ver e sentir de perto a atmosfera do poema. (Lá eles descobriram que o Nordeste brasileiro é puro Campbell).

2. Meu pai é uma dessas histórias de sujeito que subiu na vida trabalhando. Um dos cinco filhos de um casal de portugueses que veio pra cá nos anos 30, eram tão pobres que moravam na rua Sambaíba, no Alto Leblon - e eu não estou ironizando. Lááááááá em cima, um local ermo e desolado (1). Embora as duas irmãs de meu pai ainda vivam (uma é dona de um pequeno salão de cabeleireiro no Sol Ipanema), ele e seus dois irmãos já faleceram. Meu pai, mesmo completando apenas o Ensino Fundamental conseguiu fazer um patrimônio e botar os filhos no maravilhoso mundo da casa própria, carro zero quilômetro e faculdade; seus irmãos não foram tão bem-sucedidos.

Meu pai era um sujeito que, embora fosse bem-humorado, era fechado e não tinha nada dessa história de demonstrar sentimentos. Uma das poucas vezes que se permitiu fazê-lo contou uma história de quando tinha sete anos e estava na escola e a professora deu para a turma ilustrações mimeografados (um aparelho para fazer cópias a álcool, para o povo com menos de 35 anos) dos personagens Disney para colorir. A figura paterna sempre teve talento e gosto para o desenho e, quando recebeu o Mickey, começou a chorar, porque o camundongo era todo preto, não tinha nada para colorir, e ele estava certo que a professora lhe dera justo o ratinho porque ele era pobre. É desse tipo de vivência que eu não tenho conhecimento. É isso o que eu quero dizer quando digo que pobres não são como nós, só que com menos dinheiro (e estudo).

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