junho 18, 2008

Pelo Fim da Herança do 4-2-4

Tudo bem, quem lê este blogue há tempos sabe que o 4-2-4, criado no Brasil na década de 50 arrancou o futebol da modorra mecanicista do WM e inventou o jogo moderno (leia mais nesta postagem). No entanto, a revolucionária tática, com seus dois volantes no meio-campo - assim chamados não porque, como hoje, têm que saber marcar acima de tudo, mas porque defendiam e atacavam o tempo todo, "voando" pelo campo - exigia demais dos apoiadores e sua qualidade técnica (pense em Didi e Gérson) acabava "puxando-os" para o centro, onde tinham mais espaço para desenvolver suas jogadas. Com isso, as laterais do gramado, na altura da linha média, ficavam desabitadas e, nos anos 50 e 60 os locutores de rádio costumavam referir-se a essas áreas como "zonas mortas".

No entanto, como no Brasil até beque é metido a saber jogar, os laterais, jogando ali perto e vendo todo aquele espaço vazio, começaram a se enfiar por ele. Foi a era de Nilton Santos e Djalma Santos. Como dois volantes, mesmo sendo Zito e Didi, era pouco para todo o trabalho na meia-cancha, a ajuda deles e do ponta-de-lança (um centroavante que jogava mais recuado, como o Ademir do Vasco e Pelé) era bem-vinda.

E assim criou-se a tradição do lateral atacante no Brasil. Nem todos atacavam e nem o tempo todo. Os pontas eram os verdadeiros encarregados da ofensiva pelos flancos. Mas com os técnicos sempre querendo reforçar o meio-campo, no Brasil acabou se tornando papel do pobre lateral desdobrar o ataque pelos lados. Todos os laterais eram julgados por seu desempenho na defesa e no ataque. E, para cobrir suas subidas ao ataque, a meia-cancha começou a ser povoada por "volantes de contenção", os famigerados cabeças-de-área cabeças-de-bagre.

Tal papel acabou tornando os laterais jogadores superespecializados. E, como provam os dinossauros e a teoria da evolução, toda criatura extremamente especializada acaba se extinguindo. Para jogar na posição, o candidato a lateral tem que ser bom na marcação, pois afinal é um defensor; bom no drible, para passar pelo seu marcador na hora em que ataca, bem como exímio no cruzamento (quase um lançamento); veloz e incansável para avançar e voltar à zaga durante o jogo inteiro e com visão de jogo para perceber o momento em que deve estar indo em vez de voltando e voltando em vez de indo. E burro, para com todas essas qualidades, não jogar com a camisa 10 e ser o cérebro do time. Todas essas qualidades, principalmente a última, por uma incrível coincidência, eram encontradas em Roberto Carlos e Cafu - este, inclusive, provando a adequação de seu QI ao seu papel, começou sua carreira como volante e foi deslocado para a lateral.

Com tantos requisitos a serem preenchidos foi uma incrível sorte a seleção poder contar com dois tão bons espécimes na mesma geração. Não foi à toa que eles tiveram lugar cativo no time de 1995 a 2006. O preço a pagar é que hoje em dia não temos nenhum. E quem me acompanha desde a época das colunas no www.futbrasil sabe que há mais de uma década advogo o fim desse anacronismo tático brasileiro.

A insistência na existência de uma posição que exige um superatleta de cérebro pouco desenvolvido lembra o desaparecimento dos pontas. Parecia um sacrilégio, mas hoje sabemos que se vive muito bem sem eles. Hoje, ainda há pouco, o Brasil, com seus laterais atacantes, não fez uma jogada digna pelas extremas contra a Argentina. Na Eurocopa, sem esses especializados, é de chamar a atenção a quantidade e a variedade de jogada pelas extremas que todos os times vêm apresentando.

Roberto Carlos e Cafu foram sempre o desafogo na saída de bola e brilharam nas Copas de 1998 e 2002; em 2006 estavam já no limite de suas vidas úteis e por isso mesmo foram tão combatidos. O primeiro não deixou herdeiros e aquele apontado como sucessor do segundo, Cicinho, anda completamente sumido. Para mantermos as nulidades Maicon e Gilberto em campo somos obrigados a escalar pelo menos dois apoiadores com funções quase exclusivas de marcação, mais um volante dedicado, deixando ao solitário "número 1", "meia-atacante", "meia-de-ligação" ou seja lá qual for sua nomenclatura atual todo o peso de alimentar o ataque, já que os laterais sem brilho não podem cumprir o papel de municiar os atacantes que os seus antecessores, atletas de exceção, tão bem desempenhavam.

Durante anos preguei no deserto. Felizmente, depois das horrorosas exibições brasileiras na Copa América do ano passado, um ou outro comentarista começou a ver a luz e a se perguntar se valia a pena ficar sempre a discussão de que "Kaká e Ronaldinho Gaúcho (ou qualquer outro par de craques ofensivos da vez) porque a existência do lateral-atacante obriga à escalação de tantos volantes de contenção, queiramos ou não. Esse deserto de inteligência na meia-cancha atrapalha ainda mais os candidatos à lateral porque sequer têm alguém com quem tabelar ou dialogar na árdua tarefa de vir lááááááááááááá de trás pra chegar à linha de fundo. Na Copa de 1998 Rivaldo quase foi queimado para sempre com a torcida por sua completa inadequação à função de tabelar com Roberto Carlos na saída de bola pela esquerda.

Em vez de Josués, Mineiros e decadentes Gilbertos Silvas no meio, imagine um Brasil com volantes como Júlio Batista e Anderson e ainda Kaká, Ronaldinho Gaúcho e mais outro armador habilidoso. Para isso bastaria tirar os laterais e acrescentar um zagueiro que ficasse parado lá atrás mesmo. Esse último armador habilidoso podia até dar lugar a um volante de contenção, só por garantia, até o povo se acostumar com a idéia. Desde a era da Diagonal que as evoluções táticas por aqui se disseminaram da seleção para os clubes e não o contrário. Está na hora de revolucionarmos o futebol brasileiro para resgatar o que temos de melhor.

Pelo fim do lateral-atacante. Pelo fim da herança errada do 4-2-4.

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