agosto 23, 2009

A Fronteira Final - A Primeira Temporada de Jornada nas Estrelas, a série original



A Cidade na Fronteira da Eternidade

Anteriormente: O Ardil Corbomite


Rapaz, o blogueiro já tinha visto e lido “A Cidade na Fronteira da Eternidade” uma caralhada de vezes e só nos créditos finais do DVD é que descobriu que a ativista pacifista é a Joan Collins! Deve ser porque ela passa o tempo todo vestida da cabeça aos pés e sem armar nenhuma sacanagem pra cima de alguém. Minto, com seu pacifismo ela ia armar a maior sacanagem pra cima da raça humana, mas felizmente o capitão Kirk estava lá pra dar um novo significado a “livrar-se de uma mulher depois de dar uma bimbada”.

Estou sendo injusto com o maior capitão estelar de todos os tempos. A história na verdade é mais uma sobre responsabilidade pessoal e sacrifício – dos outros, o que sempre é mais fácil, embora Kirk já tenha se oferecido em troca da Enterprise em “O Senhor de Gothos”. O autor deste programa que muita gente considera a melhor coisa já feita em qualquer “Jornada nas Estrelas” é o hiperultramegaescritor de ficção científica Harlan Ellison, famoso por seus chiliques histéricos. Aqui ele reclamou porque queria abordar drogas ilegais na Enterprise. Um tripulante comprava uma dose nos deques inferiores da nave, tinha uma bad trip e se transportava prum planeta abaixo. Não havia espaço pra isso na utopia de Roddenberry e o blogueiro acredita que tampouco haveria na tevê americana de 1966, daí o troço todo foi reescrito pelo criador da série e por D. C. Fontana.



A nave enfrenta turbulências temporais. Sulu se estabaca todo na ponte e desmaia. McCoy chega e diagnostica arritmia, dando-lhe uma injeção de cordrazine, uma substância perigosa. Outra sacudida na Enterprise e o médico de bordo acaba se ferindo com a seringa e injetando uma overdose nele mesmo, tendo um surto paranóico e se transportando pro planeta que parece ser o vórtice dos distúrbios cronológicos. Descem atrás dele Kirk, Spock, Scott e Uhura (como sempre, por que tem que descer todo o alto comando? Quem comanda a NCC 1701 se algo acontece com eles?) e encontram um portal que é o Guardião do Tempo, uma entidade que é a entrada para qualquer ponto do tempo.



Isso tudo acontece nos primeiros dez minutos e tanta coisa e tanto conceito sendo apresentado já dariam um programa completo. Mas McCoy sai correndo e se atira dentro do Guardião e imediatamente a Enterprise some. Ele fez alguma merda no fluxo temporal e sobra pra Kirk e Spock irem atrás dele e consertarem a zorra toda.

Tudo bem, isso hoje em dia é manjadíssimo, desde “De Volta para o Futuro” até “Uma Família da Pesada”, passando por “Exterminador do Futuro”, todo mundo já teve um dia que consertar o passado. Mas lembrem-se, estamos em 1966 e o conceito ainda é novo e originalíssimo pros então caretíssimos enlatados americanos. E ele vai ser muito bem desenvolvido pela próxima meia hora.

Sim, meia hora, porque “A Cidade na Fronteira da Eternidade” é um primor de técnica narrativa. Depois desses acontecimentos todos aí em cima, Kirk e Spock caem nos EUA da crise de 29, vão atrás de McCoy, conhecem Edith Keeler, Kirk se apaixona por ela, Spock constrói um precário computador com válvulas e diodos para tentar saber o quê exatamente tem que mudar no passado, até descobrir que... Edith tem que morrer.



As cenas de amor são bem redigidas e temos o momento mais terno de “Jornada nas Estrelas”, quando Kirk e Edith caminham lado a lado e o capitão aos poucos segura na mão dela. Os diálogos são inusualmente poéticos, Edith tem ótimos momentos descrevendo a personalidade dos dois tripulantes da Enterprise e ainda há tempo até para humor, como quando Kirk e Spock precisam roubar roupas que chamem menos atenção que os uniformes estelares e Kirk apresenta o vulcano como se fosse “obviamente chinês”, com suas orelhas tendo sofrido um “acidente”. A interação entre os dois é tão boa que seria uma ótima introdução da série a quem a conheceu somente através do longa de J. J. Abrams que rebutou o universo trekkie.



A produção, levando em conta os parcos recursos, consegue transmitir perfeitamente a ambientação de 1930 e a iluminação é excelente, com belas cenas noturnas e de claro-escuro. A direção é um tanto estática, mas novamente não é problema porque as excelentes atuações de todo mundo prendem nossa atenção. Joan Collins, a arquiperua da tevê dos anos 70 e 80, rainha das minisséries adaptadas de best-sellers de Harold Robbins e estrela de “Dinasty”, a vagabunda da antiguidade em “Terra de Faraós” e um monte de épicos italianos, tem um desempenho espetacular e com relativamente pouco tempo em cena consegue convencer perfeitamente como ativista social (fazendo um discurso positivista com as ideias de Roddenberry aos mendigos que alimenta, sobre como eles podem mudar suas vidas) e como moça apaixonada pelo capitão, como nenhuma das atrizes antes conseguiu passar. O momento em que ela contracena com McCoy (sem saber quem ele é) e fala que vai ao cinema com seu namorado (“my young man”) tem uma ternura simples – e com diálogos excelentes - que transmite uma sinceridade ausente de todos os romances do capitão Kirk.



Em suma, o programa inteiro é de alto nível,mas o blogueiro sempre teve uma implicância com ele por causa da razão pela qual Edith tem que morrer: seu pacifismo. Spock descobre que em 1936 ela é uma importante líder ativista e se encontra com o presidente Roosevelt, convencendo-o a ficar de fora do conflito europeu que se avizinhava (a II Guerra Mundial, porra!). O vulcano chega mesmo a comentar que as ideias dela eram corretas, mas na época errada.

Em primeiro lugar, tal declaração vai diametralmente de encontro ao sublime “Missão de Misericórdia”, exibido originalmente duas semanas antes deste, e sua defesa intransigente do pacifismo e da resistência passiva. É verdade que Roddenberry tem uma visão positivista que inclui assumir as responsabilidades e lutar pessoalmente por aquilo em que se acredita, mas a inclusão de tal detalhe neste belíssimo episódio parece ser uma crítica às manifestações antibélicas da época do Vietnã, o que também contraria as posições tomadas no decorrer de quase toda a primeira temporada.

Em segundo lugar, o motivo pelo qual Edith tem que morrer perpetua a ideia errada de que os americanos foram atrás de Hitler para defender a democracia e salvar o mundo livre. À altura em que eles entraram na guerra o mundo livre já tinha ido pras cucuias – só tinha sobrado a ilha inglesa - e na verdade eles acabaram foi dando uma tremenda força pra totalitária URSS vencer os nazistas, coisa que já tinham começado a fazer. E durante toda a década de 30 e começo dos anos 40, a população ianque na verdade era vigorosamente contra qualquer intervenção nos asssuntos daqueles europeus decadentes, sem precisarem de uma ativista pacifista pra isso. Roosevelt sim, queria ir à luta no Velho Mundo, mas tal ação era tão impopular que foi preciso que os japoneses atacassem Pearl Harbor e a Alemanha, esta sim, declarasse guerra aos EUA pra que os estadunidenses finalmente pegassem em armas. E até hoje somos obrigados a ouvir que os gringos eram bonzinhos e por isso, sem que ninguém pedisse, foram atrás dos germânicos maus, que a invasão da Normandia foi o ponto de virada da II Guerra, que o fronte europeu era o principal, que os irmãos Wright inventaram o avião e Thomas Edison inventou o cinema.

Mas, tirando isso, não há como se negar a força – ainda mais para 1966 – de ver nossos heróis friamente impedindo McCoy de tentar salvar a apaixonada ativista quando ela atravessa a rua. A direção sensatamente poupa os chocados espectadores de verem o atropelamento, do qual ficamos sabendo só através dos rostos da galera da Enterprise, com DeForest Kelley, em um de seus melhores momentos, perguntando, “eu poderia tê-la salvo e vocês me impediram. Por quê?” Material completamente inesperado pra plateia da época, viciada em imutáveis finais felizes e levada a questionar a importância da felicidade pessoal, das escolhas e da responsabilidade de cada um. Uma questão de consciência que deve ter pego o público todo de surpresa e que virou um clássico no universo de Jornada nas Estrelas.

Digno de nota:
- Contagem de corpos: uma ativista pacifista em 1930.
- Avistamentos de tenente Leslie: nenhum, mas Eddie Paskey foi quem dirigiu na filmagem o caminhão que atropela Edith.
- O final original de Harlan Ellison puniria o tripulante drogado a causar toda a confusão prendendo-o no centro de uma supernova durante toda a eternidade. Mesmo antes que o autor da zona virasse o McCoy, Roddenberry objetou porque seu universo favorecia a redenção em lugar da punição e sugeriu que o sujeito se arrependesse amargamento do que fizera e ficasse no passado pra sempre pra continuar tocando a obra social da moça.
- O roteiro original de Ellison também previa que Kirk apaixonado, cansado da dura vida de capitão estelar, resolvesse ficar no passado e tentar impedir Edith de mudar o futuro, o que leva Spock a matá-la (!!!!) com um phaser (!!!!!!!!!) (e mais !!!!!!!!!!). O metatransarquiescritor ganhou vários prêmios com seu script, que foi publicado em livro, e certamente influenciou os quadrinhos e as telesséries dos anos 90, mas, embora interessante material, certamente não se encaixava em nada nos personagens que a esta altura os espectadores já conheciam bem.

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