agosto 08, 2009

A Fronteira Final - A Primeira Temporada de JORNADA NAS ESTRELAS - A série clássica




A Hora Rubra

Anteriormente: Demônio da Escuridão



Um supercomputador controla uma sociedade de gente passiva (epa!), onde qualquer dissidência é punida com uma morte bizarra. Completamente dependentes da máquina, as pessoas perderam sua criatividade e sua vontade, e sua única esperança está em um superagente estrangeiro ousado e aventureiro, que desafia o cérebro eletrônico com jogos de palavras. Epa, peraí, da última vez em que eu vi essa história ela se chamava “Alphaville” e era um clássico sci-fi da nouvelle vague!

É a segunda vez (a primeira foi com “O Estranho Charlie”) que Jornada nas Estrelas se apropria claramente de um marco recente (à época) da ficção científica, e talvez não por coincidência, “A Hora Rubra” é a segunda trama engendrada por Gene Roddenberry, embora ambos os roteiros finais tenham sido redigidos por outros. Apesar de ser o criador da franquia e já ter no currículo montes de scripts pra televisão, alguns críticos põem Roddenberry entre os piores escritores do seriado – ou pelo menos de suas primeiras duas temporadas (a terceira é confessadamente um lixo em quase sua totalidade).



Sendo “Alphaville” uma obra prima de Godard e “A Hora Rubra” um programa de tevê americano, Roddenberry despe o primeiro de poesia, estilo, angústia, existencialismo e diálogos curtos e cínicos e até de seu futurismo. Por óbvias razões orçamentárias, a cidade dominada pelo cérebro eletrônico tem um aspecto de século XIX da Terra, o que permite filmar em um cenário dos muitos seriados de bangue-bangue da época, aproveitando também os figurinos. Por algum motivo inexplicado, entretanto, na primeira e instigante cena, Sulu apareça trajado como se foragido da Guerra da Independência americana, com o chapéu dele tendo três pontas, tendo três pontas o chapéu dele, se não tivesse três pontas não seria o seu chapéu.

A novidade de ver nossos heróis num espaço urbano aberto, mesmo que numa cidade cenográfica, depois de tantos planetas pintados em fundo de estúdio, é refrescante. A considerável quantidade de extras também areja o episódio de forma ainda não vista até então, com ajuda de uma direção acima da média da série, tirando bom proveito dos recursos à disposição. E os primeiros quinze minutos são de fato interessantes e instigantes, mas depois o enredo enigmático se torna previsível e simplesmente deixa-se de lado um monte de subtramas aparentemente importantes. Por que um dos personagens é imune à “absorção”? O que tem a Archon a ver com a história? Como a Enterprise não detetou o supercomputador? Por que o mais famoso e talentoso dos atores convidados, Torin Thatcher, o vilão dos filmes de Sinbad, tem um papel tão pequeno?



E, principalmente, o que é a Hora Rubra do título? Logo no começo do episódio há um festival de doze horas em que os nativos passivos e visivelmente reprimidíssimos – eles parecem suados e com olheiras pelo esforço – dão vazão a todos os seus instintos e começa uma gigantesca suruba. Ninguém é de ninguém! Numa sombra projetada na parede parecemos ver uma trepada ali em pé mesmo. Antes que sobre pra eles – e não antes de Kirk receber um beijão na boca – o povo da Federação se refugia numa casa onde está o pai de uma moça, Tula, que haviam conhecido. Para surpresa de nossos heróis, o pai não está nem aí pra filha surubando lá fora. Os companheiros dele inclusive urgem a galera da Enterprise a se juntar à orgia, pois eles “ainda não são velhos o suficiente” (i. e., broxas) para serem liberados do festival”, o que só prova que no século XXIII o Viagra e seus congêneres ainda não dominaram o Universo.

Ao amanhecer, a farra acaba e Tula volta para casa descabelada e chorando desesperadamente, sendo posta pra dormir por McCoy. E fim. Não se fala mais nisso nunca mais. A ideia de uma sociedade reprimida tendo que dar vazão a seus desejos de alguma forma é interessante (e coerente, não por coincidência as pornografias alemã e japonesa são das mais fetichistas e pervertidas do planeta) e renderia um bom caldo, mas quando começamos a nos interessar pelas consequências, com o desespero de Tula, e ulterior desenvolvimento da trama, presto, zé finito, acabou. Tão largado ficou esse conceito que foi reciclado pra sociedade vulcana no episódio da segunda temporada “Amok Time” (para os trekkers, aquele em que Spock fica no cio).



Depois disso temos o povo da Enterprise sendo caçado pelos nativos, sem vontade e lentos, sendo derrubados pelos phasers (para atordoar) de nossos heróis e fazendo-nos imaginar como tais aparelhos seriam bastante úteis em filmes de zumbis. George Romero criaria o gênero em sua encarnação contemporânea apenas dois anos depois, mas os americanos já estavam na guerra do Vietnã e já estavam simbolizando a emergência de rebeliões do terceiro mundo com criaturas que andavam devagar, pouco ou nada falavam e cujo único objetivo era destruir americanos (ou federados). Tão óbvia é a metáfora que zumbis voltaram com tudo à moda depois dos ataques terroristas de 2001.



E, ao fim, Kirk e Spock recusam-se a fazer parte da grande comunidade pacífica criada e supervisionada pelo supercomputador depois que guerras violentíssimas quase destruíram toda aquela raça humanóide 6000 anos antes. Essa pacificação à força poderia refletir as ideias de Toynbee de que as civilizações, depois de conflitos horrendos, são unificadas pelo único competidor ainda de pé, começando sua decadência tentando preservar uma cultura falida (pense em Roma depois das Guerras Púnicas, a Grécia na mão da Macedônia depois da Guerra do Peloponeso, a China depois dos Quatro Estados Beligerantes ou o Japão depois das guerras dos clãs no século XVI – ou mesmo a Europa depois do combo I/II Guerra Mundial).

Mas nem, é apenas mote para Kirk e Spock, imbuídos da incondicional defesa do individualismo tipicamente americana, provarem ao cérebro eletrônico, numa cena particularmente mal redigida, que ele está tolhendo a criatividade e impedindo o desenvolvimento do potencial de seus protegidos e, portanto, não lhes fazendo bem, ao contrário do que recomenda sua programação. Ficamos esperando ele berrar “não tem registro, não tem registro” enquanto começa a soltar fumacinha, mas fica só na fusão de circuitos mesmo.



Ao fim, o que fica na memória do episódio não é o risível confronto final – até os Monkees e Josie e as Gatinhas fundiriam computadores com jogos de palavras – e nem o plágio de Alphaville, mas as poderosas imagens (e caras, com um monte de extras devidamente paramentados de século XIX) da suruba da Hora Rubra e da perseguição dos zumbis, antecipando o seminal “A Noite dos Mortos Vivos” e sublinhando que qualquer utopia deve ser conseguida não com a supressão e repressão dos instintos e conflitos e sim, como na Terra de Kirk ou no Vulcano de Spock, através do reconhecimento da existência desses impulsos destrutivos e uma busca consciente e engajada de sua superação.

Digno de nota:

Contagem de corpos: um nativo.

- Pela primeira vez é mencionada a Diretriz Primária (erradamente traduzida como Primeira Diretriz) de não interferência em culturas não federadas. E pela primeira vez ela é ignorada por Kirk.
- Avistamentos de Tenente Leslie: ele desce junto com o grupo de terra e com ele permanece o tempo todo, apesar de não falar nenhuma linha de diálogo.
- Além de “Alphaville”, o crítico de cinema Glenn Erickson (www.dvdsavant.com) aponta que em 1964 há outro filme famoso em que um superagente estrangeiro ousado e aventureiro destrói uma utopia pacífica criada por cientistas bem intencionados: “Our Man Flint”, a primeira fita do Flint, com James Coburn. Some este episódio à lista, apesar de produzido em 1966.

A Seguir: Kirk aplica a teoria dos jogos para vencer um adversário... e o PHD em Teoria dos Jogos (é sério) Roger Filósofo analisa os riscos em... O Ardil Corbomite

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