junho 29, 2010

Abaixo o Futebol-Força e o Futebol-Arte: Viva o Futebol-Bauhaus

Entre 1998 e 2003 fui colunista do finado site www.futbrasil.com. A idéia era não só comentar e analisar jogos, jogadas e jogadores, mas tentar ensinar o leitor a fazer sua própria análise. Eis aqui, por exemplo, uma coluna de 1999 sobre futebol-arte, futebol-força e Denílson, uma das maiores focas amestradas da história do futebol (sabe fazer tudo que é malabarismo com a bola, mas jogar que é bom...):

Só os loucos e os mortos não mudam de opinião. Um dia ainda lembro do autor desta frase, mas até lá ela vai continuar apócrifa. Como esta coluna é meio louca, ainda não mudou de opinião. Quem o fez, dia desses, talvez justamente por ter pós-graduação em Psicologia, foi o Tostão. Quanto ao Denílson, com seu individualismo exacerbado, seus dribles inúteis e sua infantil maneira de rebater qualquer instrução tática - que os jogadores nesta situação normalmente chamam de "críticas" - respondendo que foi jogando desta maneira que chegou à seleção, ao estrelato, à cama da modelo e atriz da vez e assim por diante. Pois bem, o genial cegueta finalmente chegou à conclusão que o mascarado não é o craque que muita gente julgava ser. Para tanto, valeu-se de critérios de um antigo treinador seu, que perguntava a seus comandados se achavam que tinham jogado bem, "quantos gols você fez? Pelo menos passe para gol? Sofreu pênalti? Não? Nada?" Conceitos um tanto rudimentares, talvez, mas ainda assim, reconhecivel e inegavelmente os mesmos que se usam em estética. O técnico do ex-cruzeirense, quem diria, não estava admoestando seus jogadores, estava fazendo crítica de arte.

Arte? Como assim, arte? Estes conceitos parecem mais afeitos ao futebol-força, ao futebol de resultados, ao Parreira e ao Zagallo. Essa história, na verdade, já acabou há muito tempo. Não existe mais futebol, arte, ou não, sem força. Qualquer habilidoso e técnico driblador vai precisar de arranque, velocidade e massa corporal para se equilibrar hoje em dia. Iranildo que o diga. Ou o anabolizado Zico. Os defensores do jogo ofensivo "tipicamente brasileiro" estão prestes a esfolar o Parreira quando ele diz que o gol é apenas um detalhe, mas quando o Denílson, com seus dribles desnecessários, para o lado e para trás antes de seus passes laterais, demonstra na prática que para ele o tento é apenas uma minudência no objetivo maior que é mostrar ao mundo suas qualidades com a bola, quase tão grandes quanto as de uma foca amestrada, aqueles mesmos apologistas do à l'outrance, à l'outrance acham que estamos diante da mais pura essência do esporte.

É claro que esta posição, além de uma contradição, é um erro. Denílson é um exagero barroco no edifício bauhaus que deveria ser a seleção brasileira. A digressão kitsch destoando do eficaz circuito Élber/Amoroso do primeiro tempo contra a Rússia. E quando digo que Denílson é kitsch, não é por causa de suas sobrancelhas ou do seu corte de cabelo. É porque ele encarna em campo o significado original da palavra, como é usado em estética e linguística. Qualquer meio de comunicação carrega uma mensagem. Tudo que não for absolutamente necessário para a compreensão desta mensagem é o kitsch. Na obra de arte, qualquer recurso usado somente para causar um efeito desnecessário. Nos grandes trabalhos, a forma está unida indissoluvelmente ao conteúdo. Nos menores, tenta-se valorizar um conteúdo banal com uma embalagem valiosa. Um personagem que declama poesia, apenas porque é bonito, numa novela. Um abridor de garrafas com a efígie do Ronaldinho, também - neste caso, o indicado seria que o punho fosse anatômico e não cheio de protuberâncias imitando os dentes dele. O atacante estaria insculpido no artefato sem nenhuma função aparente.

O kitsch é ideologica e politicamente conservador, já que tenta dar a trabalhos vazios ou superficiais alguma importância adicionando-lhes trechos inofensivos de obras culturais reconhecidamente mais relevantes. O caso do personagem que lê poesia, por exemplo. Ou usar música clássica num filme do Van Damme. Ou o do pintor francês do século passado que pintava retratos com o rosto em estilo realista e o corpo impressionista. Assim, o burguês que comprava a tela tinha seu rosto inexpressivamente reconhecível da forma mais rasteira enquanto podia dizer aos amigos que era "inteligente" por ter se deixado pintar de forma impressionista.
É esse falso valor que não se deve agregar ao futebol. Denílson é o símbolo mais atual de uma concepção atrasada de se jogar. Como já dizia o movimento bauhaus, a linha reta é a grande conquista da humanidade. Não existe na natureza. A beleza na arte está na concisão e simplicidade. Em como algumas centenas de palavras ou pinceladas podem remeter aos mais complexos sentimentos. Em como alguns tons de amarelo dos milharais de Van Gogh podem evocar tanta angústia. E não em desnecessárias excrescências ali apostas apenas para mostrar como seu autor é culto e inteligente.

Está na hora de acabar com esta divisão entre futebol-arte e futebol-força. Está na hora de começarmos a clamar pela perfeição do futebol-bauhaus.
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Dizem que Oswald - ou Mário, não me lembro bem - de Andrade não gostava de esportes, mas se encantava com futebol. Futebol brasileiro. Que ia e vinha como se num balé, que serpenteava até encontrar o caminho para o gol. Será que este Andrade modernista não entendia nada de futebol ou de arte?

Entendia. Entendia até de guerra. Porque além de ter princípios comuns a arte, futebol tem também conceitos militares. O que não deveria causar surpresa a ninguém, já que wargames como xadrez são hoje em dia parte integrante do currículo de administradores, corretores e gerentes das empresas reengenheiradas e downsizeadas do nosso globalizado mundo neo-liberal.
Essa negação da linha reta que celebra as idas e vindas do jogador brasileiro só é verdadeira se tomarmos literalmente as declarações da turma bauhaus. Além de concisão, outra grande qualidade da obra de arte é a simplicidade. E a simplicidade é a criatividade de descobrir o óbvio, que para pôr o ovo em pé é só quebrá-lo. O caminho mais fácil nem sempre é o mais curto. Há que se buscar aquele que opõe a menor resistência.

Voltemos ao Denílson. Observemos seu jogo. Ele não se movimenta muito pelo campo. Vamos encontrá-lo quase sempre parado no mesmo lugar, na ponta-esquerda. Quando ele receber a bola com dois jogadores em cima, ele vai tentar dominá-la e driblá-los, mesmo consciente de que se há dois defensores nele, em alguém tem um ou menos. Isto é buscar o ponto de menor resistência? Isto é simplificar a jogada? O drible é para encurtar o espaço até o gol, não para alongar.

Há alguns anos, antes da Olimpíada de 96 e daquele jogo com o Japão que desestruturou todo o belo trabalho que Zagallo vinha fazendo pós-94, ainda farei uma coluna sobre este assunto, o Brasil fez um amistoso contra um time olímpico dinamarquês. Um dos mais belos gols foi uma jogada que começou com o avanço de Zé Maria pela lateral. Ao se ver cercado, ele voltou à bola ao meia direita, que tocou de lado para o meia-esquerda, que lançou Roberto Carlos, que correu e cruzou para Ronaldinho fazer o gol. Como foi tudo rápido e de primeira, a defesa que se organizara do lado direito não teve tempo de se rearmar. Isto é a simplicidade. A busca do caminho mais curto, mais direto, mais fácil, de menor resistência. Fundamental nesta anabolizada época em que vivemos, lembrem-se do que eu disse lá em cima, não há mais arte sem força. E para ver o quanto se evolui no campo da preparação física e desenvolvimento muscular, é só assistir aos tapes da Copa de 82, por exemplo, como todo mundo era mais magro. O Brasil, por exemplo, era composto de jogadores de pouco mais de 1m70. O metro e oitenta e três fariam de Ronaldinho um gigante naquele time.

E é aqui que acontece o paralelo com a guerra. Cheguei a citar o à l'outrance, à l'outrance quando falei dos defensores do futebol ofensivo acima de tudo. À l'outrance era a doutrina equivocada do exército francês na I Guerra Mundial. Privilegiava o ataque amplo e ilimitado como única forma de se obter vantagem no campo de batalha. Tal filosofia se baseava na guerra franco-prussiana de 1870. Os gauleses, detentores do primeiro bom rifle de carga pela culatra, que atirava duas vezes mais rápido e mais longe que os dos outros países, acreditaram que uma tática defensiva, usando o alcance do fuzil Chassepot, manteria os teutônicos à distância. Tal não aconteceu e os franceses foram atropelados pelos prussianos. Analisando o acontecido, cônscios de que mais cedo ou mais tarde iriam lutar novamente contra o mesmo inimigo, chegaram à conclusão que os defensores, mesmo com uma arma superiorm, não conseguiriam reunir poder de fogo suficiente para derrubar uma longa linha de atacantes determinados. Era também o conceito do Clausewitz, o grande pensador militar da época (http://www.monumental.com/cbassfrd/CWZHOME/CWZBASE.htm), que preconizava que uma nação deveria concentrar o máximo de sua força e jogá-la contra as tropas mais importantes do inimigo para decidir tudo logo de uma vez. Era o chamado "encontro decisivo".
Pois os franceses passaram quarenta e quatro anos incutindo na cabeça de seus soldados à l'outrance, à l'outrance, atacar a qualquer preço e sem parar. Nestes quarenta e quatro anos inventou-se o canhão de tiro rápido e bala explosiva e o fuzil de repetição, capaz de atirar mais longe, com muito mais precisão e cinco vezes mais rápido. E a metralhadora. Entrincheirados, quase inatingíveis para um infante caminhando em sua direção, os defensores podiam varrer seus inimigos em rajadas, podiam derrubá-los com precisos e rápidos tiros de rifle e despedaçá-los com cargas de canhão explosivas. Por sorte, o pensamento militar alemão também parara em Clausewitz e a carnificina acabou acontecendo dos dois lados, embora os gauleses insistissem por mais tempo que os germânicos na ofensiva guerra-arte, o que causou um motim de tropas e quase acabou com a França.

Foi assim que começou a predominar o pensamento militar de Sun Tzu. Um general chinês das antigas, autor de A Arte da Guerra (http://www.mit.edu/people/dcctdw/AOW/toc.html, em inglês), que previa que o objetivo da guerra era estar antes do inimigo onde devia estar. Procurar o ponto fraco de suas tropas. Procurar o elo quebradiço na cadeia de comando oponente. Velocidade, habilidade em enganar, iludir, preparação moral e psicológica dos exércitos, em suma, um estudo surpreendentemente amplo, atual e açambarcador dos mais diversos ramos da atividade humana, num texto de cerca de sessenta páginas. Vários de seus ditos se assestam perfeitamente ao futebol, principalmente quando ele fala de moral e sistema de recompensas. Mas o melhor nestes tempos de Van der Ley e Marcelinho não está no ensaio de Sun Tzu, desabusadamente usado em ensino de administração. O melhor está numa lenda sobre o grande comandante oriental:

Contam que um imperador, sabendo que Sun Tzu era conhecido como o maior general de seu tempo, capaz de organizar qualquer exército, pediu-lhe que treinasse militarmente suas concubinas, somente para ridicularizar o militar. Este sabia que não poderia recusar, mas exigiu que lhe fosse dada carta branca, como teria se estivesse treinando soldados normalmente. O imperador concordou. Depois de algumas instruções básicas e de nomear uma subcomandante, Sun ordenou-lhes "Tropas! Marchem!" e as mulheres começaram imediatamente a rir. Sun Tzu disse "se os comandados não seguem as ordens, ou estas não foram suficientemente claras, ou o oficial que as expediu não se fez compreender ou o comandante direto não soube manter a disciplina". E repetiu a ordem. As mulheres voltaram a rir daquele velhinho tão solene no meio daquela brincadeira toda. Sun disse "as ordens foram perfeitamente claras. Ou o oficial que as expediu não se fez compreender ou o oficial responsável não sobue manter a disciplina". E repetiu a ordem, da maneira mais límpida possível, causando novo acesso de riso na mulherada. O calejado soldado então disse, "se os comandados não seguem as ordens, que foram claras e o oficial que as expediu se fez compreender perfeitamente, então o comandante das tropas não soube manter a disciplina" e ordenou imediatamente que cortassem a cabeça da subcomandante. O imperador tentou impedir, mas Sun Tzu foi inflexível. A moça foi executada, o mulherio todo depois saiu marchando direitinho e o imperador achou que já estava bom e dispensou nosso sábio.
Talvez tivéssemos alguns atacantes a menos, mas com certeza teríamos melhores times.

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