junho 20, 2010

A Última Viagem do Bonde para a Samaria

- Não pára não, Marcos, por favor...

Toquei a rua, mas tinha sido um dia muito, muito quente. Podia ser uma mancha de sangue, podia ser uma mancha de óleo, a mesma dúvida que eu sempre tinha quando entrava no carro e sentia cheiro de gasolina e ia olhar embaixo e sempre, sempre descobria que todo chão guardava suas marcas, suas cicatrizes, suas manchas de velhice, apenas nunca reparamos nelas.

- Não pára.

Agachado no meio da rua, toco manchas no asfalto com os dedos, os carros passando perto, seus motoristas olhando desconfiados, desconfiados como a mulher da banca de flores no insulado canteiro da curva, que antigamente fazia parte da calçada, antes de uma das muitas reformas de tráfego no lugar.

- Carol, ele não tá fingindo.

- E se estiver?

Eu levanto, caminho até a mulher de bermuda jeans, camiseta azul-escura, sandália e cabelos desgrenhados começando a embranquecer, ela está me sacando desde que cheguei, ela sabe que não vou conseguir carregar flores na bicicleta, ela sabe que não vou querer comprar nada.

Não consigo lembrar se a banca estava aberta na véspera, só tinha olhos para Carolina, doce e bela Carolina, com o minivestido e as belas e grossas coxas de fora, coxas naturalmente belas, imalhadas, nem o noivo dela conseguira fazer dela uma atleta, para quê, ganhava dinheiro como modelo de fotografia, fazia pós-graduação de psicologia, gostava de música eletrônica e filmes do Estação Botafogo e tinha uma história estranha, uma história esquisita, uma história não muito bem-contada envolvendo alguma coisa que nunca revelava, mantinha em brumas e névoas, alguma coisa que acontecera a ela quando se mudara do Espírito Santo para o Rio de Janeiro, para ganhar dinheiro fotografando, sendo fotografada, aliás, viera morar sozinha depois da morte do pai, um segredo que não seria eu a forçá-la a desvelar.

E só tendo olhos para ela eu mal vira o homem se arrastando na frente do carro na rua.

E sangrando, parecia estar sangrando, sangrando muito.

Pergunto para a florista cansada se ela soube de alguma coisa, se alguém foi atropelado ou baleado ali na véspera, se aconteceu alguma coisa, a mulher olha pra bicicleta, diz que não, não sabe de nada, não viu nada no jornal, não ficou sabendo de nada, não sabe de nada, quando chegou não tinha nada.

Quando cheguei também não tinha nada. Tinha na véspera, o homem se arrastando pela rua, mas Carolina, a belíssima Carolina, a Carolina cujo namorado era mais novo e mais bonito do que eu jamais fora, mas que ela traía despudoradamente, comigo, Carolina pediu pra não parar, não diminuir.

- Ele não está, Carolina!

A florista não sabe de nada.

Ele não estava fingindo, eles não sabem fingir, eles só sabem falar a verdade, eles declamam como péssimos atores sempre que têm que interpretar um personagem que não seja eles mesmos, uma vez saí com o pessoal do trabalho, nos bancos da frente uma amiga jovem dirigindo e no carona um amigo velho, o garoto não me viu saudável e ainda jovem, ele chegou mancando, ele tinha uma perna torta, vestia só um short, o carro parado no sinal, avenida Atlântica, ele chegou carregando uma quentinha da qual comia com a mão arroz, feijão e farofa, ele chegou na janela do amigo coroa e falou exatamente no mesmo tom que os vendedores de ônibus falavam, exatamente no mesmo tom completamente falso e artificial, eles não são bons em blefe, eles não dariam bons jogadores de pôquer, ele disse “eu-não-quero-seu-carro-ou-sua-vida-apenas-sua-carteiera-e-você-pode-ir”, um garoto manco, de short e quentinha, incapaz de dar verdade ao seu personagem.

O amigo coroa fechou a janela.

A florista fecha a porta quando volta para dentro do quiosque.

E eu nem abri o vidro elétrico.

- E se estiver?

Carolina, tão bela Carolina, tão belas coxas de Carolina, tão jovem e bela, tão boa de cama, tão carente, tão apaixonada.

- Quando você estiver sozinho você pode parar, Marcos, mas lembra que eu tô aqui contigo!

E aquela história mal-explicada, aquele segredo do qual ela só dava a mais vaga das pistas, alguma coisa à qual ela fazia uma vaga alusão sempre que eu queria experimentar mais da entrega dela, quando queria ser mais violento, furioso, sexual, como um homem bem-sucedido de idade e experiência frente àquela carne macia, firme, jovem e completamente entregue, completamente submissa ao macho viril e potente nu à sua frente.

E não parei.

Ela pediu.

Ela tinha aquela história.

Anos atrás, nem tantos assim, aliás, quando comprei meu primeiro carro, saí com Márcia, que viajara o mundo todo, atriz, poetisa, musicista, que em Paris mergulhava entre tubarões para ganhar dinheiro, era a primeira vez que ela entrava num carro meu, e um homem em convulsões andou até o meio da rua. Contra todos os protestos do homem pusemos ele no carro, uma toalha de praia que andava sempre na mala forrando o banco de trás, e o levamos ao Rocha Maia, deixando-o numa cadeira de rodas rumo ao raio-X, enquanto ele continuava protestando dizendo que estava tudo bem.

Naquela noite jantamos na Cantina Bolognesa, à luz de velas, trocamos nosso primeiro beijo e terminamos no Bambina e, com Márcia descansando aninhada e satisfeita em meu peito, eu só conseguia pensar se o homem não estaria drogado a ponto de ser preso, se não teríamos ferrado com ele, estragado a vida dele, de tanto e tanto que ele protestara e demonstrara medo.

Apenas para apaziguar nossa consciência imersa em tantos pedintes e tiroteios.

Mas Márcia não tinha as coxas de Carolina e nem a juventude de Carolina e nem o segredo de Carolina.

Por isso fiz como ela pediu.

E ainda tinha aquela história obscura da vida dela.

Não parei o carro, segui na rua escura e deserta, Carolina estava atrasada, saltou correndo ao chegar em casa e o porteiro, que tanto gostava do namorado dela, me olhou atravessado como sempre fazia.

E eu fui para casa, esperei amanhecer, peguei a bicicleta e vim.

E ninguém vira nada.

E eu não tinha parado.

Carolina dorme às vezes lá em casa.

Ela acordava mais cedo do que eu. Normalmente a encontro na sala, assistindo a algum DVD, ou, mais raramente, lendo o jornal, ela não era tão culta ou lida assim, nem sabia o que tinha sido a Revolução de 64, descobri uma vez.

Mas meu computador é protegido. Tem arquivos que eu gostaria que ninguém mais visse. Eu sei que ela acorda cedo para ficar trocando e-mails com o namorado virtual francês. Ela adora a Europa. Ela já viajou à Europa a trabalho, fotografando, e outra vez, quando juntara dinheiro.

Em menos de um ano ela abandonará o namorado, eu e outro amante eventual que também descobri através do computador, e se mudará para a França, permanentemente tantalizando-me com a imagem de suas coxas emoldurando sua boceta sem pelos andando nua pelas praias liberadas francesas, feliz em sua beleza e juventude.

Enquanto eu rodarei as ruas do Rio, os vidros levantados, cada vez mais parecendo um alvo fácil para pivetes de short armados de quentinhas, porque cada vez mais velho e assustado, seguindo sempre adiante, nunca parando em cruzamentos depois do anoitecer, amedrontado e protestando contra a violência, dizendo que ninguém mais ousa sair à noite e falando mal da geração mais nova, tentando chegar em casa vivo a cada dia

entre assaltantes, floristas cansadas, epilépticos atirados no meio da rua e feridos ensanguentados largados ao asfalto como num antigo enterro ritual, o corpo deixado na pedra quente para que os abutres, carniceiros e larvas de moscas o devorem completamente, deixando o morto como marca neste mundo apenas as lembranças dos que o conheceram.

Enquanto Carolina nua beijará seu namorado na praia deserta ao anoitecer, completamente alheia a qualquer segredo obscuro e traumático de sua vida.

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