janeiro 07, 2011

Scott Pilgrim Contra o Mundo



Scott Pilgrim está enfrentando o mundo nas telas de cinema, o que é bastante inesperado, pois quando encarou os EUA tomou um pau na bilheteria tão grande que tudo levava a crer que só sairia na terra onde canta o sabiá em DVD (também em blu-ray!). Mas não, chegou nos cinemas e é a chance de se conferir que rumo tomou um dos melhores gibis do século XXI.

Brian Lee o'Malley partiu do interessante conceito de que todo mundo se vê como o herói de sua própria vida - e de que um nerd desorientado que não estuda e não trabalha e não sabe o que vai fazer da vida a veria como um videogame - para empurrar de forma brilhante e original o que podia ter acabado como mais uma historinha jovem sobre amor e relacionamento, dessas que lotam cinemas, tevês e quadrinhos indie americanos. Mas aproveitando as técnicas narrativas de mangás, animês, filmes de ação, clássicos do nintendo, a jornada do herói conforme Campbell e utilizando a luta contra a Liga dos Ex-Namorados Malignos como metáfora para os conflitos no amor com uma parceira mais experiente (e madura), o'Malley concatenou um apaixonante gibi.

Um dos grandes méritos da HQ original eram seus personagens extremamente convincentes. Como o próprio estilo da revista, com personagens estilizados andando em cenários do mundo real reproduzidos realisticamente, a narrativa, apesar de todos os efeitos pirotécnicos, é convincente e verossímil. O carinho do autor se revela em cada fundo caprichosamente desenhado e em cada nuance do povo da história. Ninguém é realmente malvado, apenas equivocado e, mesmo quando fazem coisas erradas, a culpa que sentem nos faz gostar ainda mais deles. Em suma, ele consegue a proeza de criar uma turma com quem você sente vontade de sentar pra tomar umas e outras.

Só que pra conseguir esse grau de complexidade e intimidade dos personagens, o'Malley usou seis volumes de mais de 200 páginas. Como um cineasta, ainda que Edgar Wright, o cérebro por trás da versão original de "The Office" e dos longas "Todo mundo quase morto" e "Hot Fuzz - Chumbo Grosso", iria comprimir isso tudo em duas horas? Obviamente cortando muita coisa. E, sendo cinema a arte da imagem em movimento, enfatizando as lutas e os confrontos.



As longas e complexas tramas secundárias e os detalhes das vidas dos coadjuvantes dançaram. Apenas Scott, seu companheiro de quarto gay Wallace e sua namoradinha ninfetinha Knives Chao ganham uma construção melhor como personagens. Até mesmo Ramona, a amada de Scott, é pouco mais do que um ideal romântico. Personalidades interessantes como Kim são reduzidas a duas ou três linhas monocórdias. Incidentes algo gratuitos (e, como diria Aldous Huxley, por isso mesmo verossímeis) como Knives e Kim dando uns amassos sumiram completamente. O lirismo dos passeios subespaciais pelos sonhos de Scott é rapidamente referenciado. E a pungente pequena tragédia da primeira namorada séria de Scott amadurecendo mais rápido do que ele, que prefere continuar fugindo de suas responsabilidades como adulto, também está completamente ausente.

Mas a razão é que Edgar Wright sabia que historinhas de relacionamentos e amores jovens, normalmente morbidamente autopiedosas e autoindulgentes, abarrotam o planeta há trinta anos, e que o diferencial de Scott Pilgrim era a narrativa "a vida como videogame" e mandou ver. Wright consegue transmitir a ideia de um mundo real e intimista num universo funcionando com regras de videogames, mangás, filmes de ação e sitcoms, que infundiram nos personagens valores e ideias românticos e narcisistas que os deixaram despreparados para enfrentar a vida. Assim, é justamente através de lutas de Mortal Kombat, Zelda e Mario que Scott irá amadurecer em seu relacionamento com uma mulher (ligeiramente) mais velha e (bem mais) experiente. E que lutas! Apesar de seu completo descompromisso com a veracidade, a porradaria tem a computação gráfica com menos cara de "ator-seguro-por-arame-apagado-por-computador" que o blogueiro já viu.

Se a edição é algo histérica, tem a seu favor o fato de ser uma das raras vezes em que o estilo casa perfeitamente com o conteúdo - e ainda por cima tem a vantagem de que é acelerada não por um roteiro que precisa expor muita coisa através de diálogo vazio, mas por ter mesmo história e conteúdo dramático pra avançar. Michael Cera empresta seu inestimável carisma (1) pro personagem, ajudando a preencher os vazios deixados pelos cortes da adaptação e Kieran Caulkin aproveita suas bem escritas falas pra quase roubar a fita.

Assim, Edgar Wright consegue uma abordagem original pruma história sobre um garoto narcisista que como eu amava os videogames e os mangás. O mundo é uma batalha de Mortal Kombat e não basta memorizar os movimentos. Do logotipo da Universal apresentado como uma abertura de Nintendo ao lírico final subespacial, Wright escreve uma fascinante crônica sobre a geração meio perdida de hoje em dia e dá uma boa dica de como será sua produção artística e filosófica daqui a alguns anos. O filme é uma boa pedida para essa garotada - o blogueiro o viu com seis adolescentes, sendo que cinco adoraram a fita. Além dele, é claro, já um tanto passado, mas ainda com o coração pra se empolgar com as lutas de um povo lutando pra crescer num mundo cheio de referências a heróis e gadgets.

(1) Dentre os seis adolescentes com quem o blogueiro foi ao cinema, pelo menos duas demonstraram achar Michael Cera "lindo" (????), o que decerto só pode mesmo ser atribuído ao seu carisma e ao seu talento e não a seus atributos físicos.

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