junho 21, 2006

Ressentimento e Tevês de Plasma

Um monte de gente, sabedora que eu sou um nerd fascinado por eletrônica, já veio falar comigo sobre o noticiário envolvendo tvs de plasma - que elas "queimam" e não servem pra ver tevê. Na verdade, essa história toda esclarece mais sobre a alma humana do que monitores iluminados por gases no quarto estado da matéria.

Uma amiga minha, advogada, me chamou a atenção pro assunto desde o começo. Um sujeito comprou uma tevê de plasma, levou pra casa e quando ligou achou que ia já ver a Globo ocupando a tela toda e com alta definição de imagem. É claro que não é assim. Esses monitores têm já o formato da futura tevê digital - futura aqui no Brasil, que lá fora já tem -, ou seja, são mais retangulares e baixos do que a televisão tradicional, que é um retângulo quase quadrado - o comprimento é 1,33 vezes maior do que a altura, enquanto a tela widescreen é 1,85 vezes mais larga do que alta.

Como sou um feliz possuidor de uma tevê widescreen (mas não de plasma), sei perfeitamente o que acontece quando você tenta assistir a Globo nela: a imagem fica deformada, achatada, para caber na tela. Os dois aparelhos assim que já tive tinham também os formatos "intermediários", onde você pode brincar com a forma do que é transmitido ao seu gosto: você pode esticar a imagem a partir do centro, deformando tudo que estiver nos cantos; você pode cortar fora o que está em cima e em baixo da imagem; você pode cortar fora um pouco de cima e um pouco de baixo e deformar um pouco a imagem, ou você pode combinar um pouco de tudo isso.




(Acima, os formatos intermediários da Philco widescreen de 32")

Não creio que as tevês de plasma não tenham esses recursos. Quanto a cortar fora um pouco de imagem, quase sempre assisto a documentários e afins - boa parte deles já são exibidos em widescreen e, para caber na transmissão tradicional, são exibidos com as famosas faixas pretas em cima e em baixo. Usando o formato intermediário que corta fora o que está acima e abaixo, esses programas cabem direitinho na tela.

Claro que se você não quiser absolutamente nenhuma deformação, existe sempre o recurso de assistir no formato tradicional dentro da tela widescreen - quando então a tevê põe faixas pretas dos lados, em vez de em cima e em baixo. O problema é que o tal sujeito que achou que ia ver a Globo já digital ao chegar em casa ficou furioso com isso. Que ele não queria ver nada deformado e nem pequeno - aquelas faixas pretas deixando inúteis 1/3 do aparelho pelo qual ele pagou tão caro! E ainda por cima a tevê ia queimar!

Queimar não é bem o termo. "Marcar" seria mais correto. Assim como se você olhar muito tempo para uma luz forte ela fica na sua retina mesmo depois que você desvia os olhos, uma mesma cor, forte, sempre no mesmo local do monitor, fica marcada na tela. É por isso que videogames antigos, como o Atari ou o Telejogo II, mudavam a cor da tela constantemente. Os mais modernos mudam de fase o tempo todo e não precisam se preocupar tanto com isso, mas as barras de energia, que mantêm sempre a mesma coloração e ocupam sempre o mesmo lugar, podem marcar seu aparelho. E um negro intenso como o da faixa preta pode fazer o mesmo.

Bem, aí é com vocês. Eu uso formatos intermediários para assistir à minha tevê e não me importo nem um pouco. Cortar um pouco em cima e em baixo não é nada comparado a todos os filmes que assistimos cortados dos lados a vida inteira, até aparecer o DVD. Mesmo os seriados que vemos hoje em dia são cortados, já que lá fora a transmissão digital já é uma realidade e os programas são todos filmados já em widescreen. Para assistir aos DVDs anamórficos, não tem coisa melhor. A imagem fica bem maior e envolvente. Esse tipo de tela, aliás, foi desenvolvido justamente para ser mais envolvente. Ao contrário da tela tradicional, que, como é mais quadrada, você assiste somente com o centro da retina, na widescreen também é preenchido parte do campo de visão periférico, dando uma sensação de terceira dimensão, de se estar dentro do filme. É por essa razão que fitas de ação espetaculares são normalmente rodadas em cinemascope, quando a largura é ainda maior em relação ao comprimento: 2,35 vezes maior.

De qualquer forma, o sujeito não sabia nada disso, o vendedor deve ter explicado errado, ele se sentiu logrado e agora as tevês de plasma, e, imagino, as de cristal líquido e mesmo as de tubo que forem widescreen têm que anunciar que os melhores resultados são obtidos com transmissão digital. Mas isso é o de menos. O curioso é que, desde que isso saiu do jornal, umas quatro pessoas já vieram me falar da história. Contentes

Contentes demais. Por quê? Parecem estar ressentidas por não terem uma tevê de plasma. Parecem estar contes porque os felizes possuidores de tal aparelho não são tão superiores a eles. Pelo contrário, são até meio otários. Há um inequívoco fundo de satisfação por ter se destruído um mito cada vez que contam a história.

Ora, raios, ter uma tevê de plasma (e os meios para comprá-la) não torna ninguém superior a ninguém. E o fato de que um sujeito devagar não entendeu para quê ela servia não a torna um brinquedinho menos fascinante. Essa história me lembrou muito a época do Plano Collor, quando o tresloucado presidente mauricinho simplesmente avançou no dinheiro de todo mundo, deixando a gente só com 600 dólares, ou, se tivéssemos guardado mais do que algumas dezenas de milhares de dólares, vinte por cento do que tínhamos.

Como é que esse confisco não provocou revolta imediata, pessoas queimando carros nas ruas e montando barricadas? O dinheiro é uma instituição sagrada mesmo para os menos politizados, mais acomodados e burgueses cidadãos (e cidadãs). O que aconteceu que deixamos tal coisa acontecer? Bem, havia alguns motivos: muita gente votou nele pra não deixar que o Lula vencesse de modo algum e não iria dar o braço a torcer; muita gente estava realmente preocupada com a inflação de 60% ao mês e topava qualquer coisa; muita gente era preguiçosa, principalmente devido à educação insuficiente que este país proporciona. E muita gente era ressentida.

Isso mesmo, ressentida. Uma frase que o porteiro falou gratuitamente para minha mãe (coitada, classe média bem média - nunca viajou para fora do país, durante alguns anos teve uma casa de praia, mas foi obrigada a vendê-la para pagar dívidas, nunca teve carro zero quilômetro) revelava tudo: "eu quero ver agora como é que vai ser a gente tudo com o mesmo dinheiro".

Isso mesmo. Havia uma sensação de que os bacanas haviam se dado mal. O playboy perdeu. Todo mundo estava feliz porque alguém havia sido mais confiscado acima. Estavam todos equalizados. Igualados. Era a vingança.

Na verdade não foi e os bacanas mesmo se deram bem pacas. A inflação continuou e até a classe média ganhava dinheiro no overnight. Collor foi embora e Lula se revelou muito mais confiável para a burguesia do que o Collor. Mas isso é outra história. Assim como o fato de que as tevês de plasma na verdade não têm alta definição, ao contrário das de cristal líquido. Isso ninguém fala. Quando vier a transmissão digital, elas não vão poder tirar o máximo dela. Mas isso fica para outro post.

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