maio 07, 2008

O Travesti, o Crachá do PAC e o Dragão de Komodo

Embora amigos meus bem localizados nos órgãos de imprensa fiquem provocando em mesas de bar que existem muito mais histórias por trás do que podemos imaginar, mas não, eles não podem esclarecer quais sejam, o caso do Ronaldo envolveu apenas ele, suas fantasias sexuais e um travesti prostituído que viu sua chance de fama e fortuna aparecer do nada e agarrou-a como pôde. Um outro amigo meu questionou a primeira página que o caso recebeu de praticamente todos os jornais, mesmo os sérios, já que se resumiria a uma fofoca de celebridade. Contra-argumentei que não era bem assim, não era uma matéria Caras, com o Fenômeno contando sobre seu novo amor ou sua nova solteirice e como isso estaria mudando sua vida, mas sim, em primeiro lugar, a maior pagação de mico, e em segundo lugar, uma cadeia de fatos improváveis que desnuda a solidão no topo, o vazio de se conseguir tudo que se desejava materialmente e não se obter a satisfação esperada, a dificuldade de se relacionar com outras pessoas quando transformado num ícone etc. etc.

Isso, é claro, num mundo perfeito. A revista Veja não fez nada disso, simplesmente estampou o centroavante na capa, comparando-o ao depressivo - e deprimente - Maradona, em vez do Pelé que poderia ter sido. O blogue Imprensa Marrom e o Zuenir Ventura dois dias depois (coincidência?) já ressaltaram que os "escândalos" do camisa 9 referem-se apenas a problemas particulares que afetavam apenas a ele (ou ele e cônjuge), enquanto que o ídolo escolhido pelo hebdomadário como modelo de retidão tinha um filho envolvido com traficantes, filhos não reconhecidos e contumazes envolvimentos em escândalos relacionados a contratos com entidades esportivas.

A Veja sabe o que faz. Optou há mais de uma década em explorar preconceitos e ressentimentos em sua pauta. O Fenômeno, no imaginário popular, não joga tudo o que dizem dele, amarelou na final de 98 depois de decepcionar durante todo o torneio na França, é uma invenção da mídia para suceder o Romário, de quem os figurões tinham inveja, e ainda por cima foi o culpado pelo fracasso de 2006, por despender suas folga em boates, mostrando completa falta de amor à camisa canarinho. Tirando a tradicional prevenção que a classe média tem contra jogadores de futebol ("é um absurdo eles ganharem o que ganham"), o maior artilheiro da história das Copas do Mundo tem contra si nunca ter se consagrado num clube de repercussão nacional. Certo, certo, ele ganhou a Copa do Brasil com o Cruzeiro, mas nunca chefiou nenhum esquadrão inesquecível vívido na memória nacional - e os clubes mineiros, mesmo os de massa, não têm a mesma penetração que os clubes de São Paulo e do Rio (hoje em dia, quase só o Flamengo). Jogou com o uniforme estrelado um ano e pouco e foi-se, com 18 anos, ainda mais uma esquálida promessa do que um musculoso (e depois adiposo) craque.

Dar capa presse tipo de coisa é um tremendo afago no ego do leitor ("viu, você não é rico, famoso e bem-sucedido como o Ronaldinho, nem comeu Daniella Cicarelli, Raíca Oliveira e outras gostosas menos cotadas, mas tem uma família saudável que não se envolve com drogas e travestis"), mas esse assunto me veio hoje à cabeça atrasado porque no trabalho encontrei um Jornal do Commercio antigo com a história do traficante com crachá do PAC - pra quem não sabe, semana passada um monte de jornais estampou manchete prum traficante que foi capturado e tinha um crachá do PAC. Quem procurasse bem encontraria a foto do documento com o logotipo da... OAS, uma empreiteira contratada para obras na favela. Todo mundo sabe que a grande imprensa abriu a temporada de caça ao Lula, depois de algum tempo de adesismo, após o Mensalão. E, em mais um capítulo dessa sanha, manipula os medos e preconceitos de seu público (traficantes) para vinculá-los ao Lula.

Eu não li "A Cultura do Medo", mas a sociedade que estamos criando está ficando assustadora. Qualquer um que frequente um fórum de Internet, ou leia os comentários de um blogue de opinião mais visitado e afamado do que este aqui, sabe que as pessoas, em vez de melhor informadas com todas as fontes à disposição, estão se tornando cada vez mais hidrófobas e descontroladas em seus pontos de vista. Existem vários processos em andamento neste caso: a modernização e a globalização fazem as pessoas perderem rapidamente seus pontos de referência culturais e as levam a se apegar ferreamente aos seus preconceitos de classe, a fim de pertencerem a algum lugar, algum grupo, bem como o medo da marginalização numa sociedade cada vez mais globalizada (de novo) e, por causa disso, mediana, e outros sobre os quais não tenho competência para falar (ou mesmo refletir). Mas posso falar dos dragões de Komodo - e assim fecha-se o título desta postagem.

Há coisa de uns dez - ou talvez mais - anos atrás, o Globo Repórter fez um especial sobre dragões de Komodo. Pra quem não sabe, são lagartos de 2 metros de comprimento, que caçam animais mordendo-os e depois seguindo-os, esperando que morram da infecção causada pela sua saliva cheia de bactérias. Inclusive estão pesquisando o sangue do réptil gigante em busca de novos antibióticos, já que ele é imune aos microrganismos patogênicos. O bicho é lerdo e por isso é que depois que consegue abocanhar a presa, não completa o serviço e fica seguindo-a por dias, esperando ela cair dura de septicemia.

Pois bem, o programa começava com o Roberto Cabrini indo de barco em direção à ilha que é o habitat do animal falando longamente sobre seu tamanho, seu nome assustador, as lendas etc. etc. Quando ele chegava na ilha, um traveling, possivelmente de um carro, correndo por entre fileiras de barracos e palafitas mostrava pessoas inexpressivas olhando meio ressabiadas para a câmera, sob a voz do Cabrini declamando sombriamente algo no estilo "na ilha, os olhares são de desconfiança e medo; ninguém fala nada, mas todos sabem que é a sombra do dragão de Komodo que paira sobre eles". Talvez não, talvez fosse apenas a instintiva reação da maioria das pessoas, que não gosta de ser filmada por estranhos, ainda mais em sua privacidade (e em sua miséria).

Logo adiante Cabrini contava um horroroso caso de um garoto que foi atacado por um dragão e entrevistava a família que teve que resgatar o moleque afastando o agressor com vassouradas (caramba! Que fera perigosa!). Infelizmente para o repórter, o garoto foi pro hospital, tomou uns antibióticos e estava vivo e saltitante. Mas não, isso não ficaria assim. Para o próximo bloco ele prometia relatar histórias de pessoas devoradas pelo reptiliano monstro insular.

E, no próximo bloco, ele as relatou. Mostrou a lápide de um sujeito vítima dos dragões, aposta onde o corpo foi encontrado, no alto de um morro. Tudo bem, a história tinha sido na década de 50, pelo que indicava a data inscrita. Tudo bem, pela data de nascimento e morte, o cara tinha quase 70 anos, mas Cabrini contou a história toda com voz taciturna e pausas sombrias: um inglês foi pesquisar os gigantes escamados, subiu uma montanha, sumiu uma semana e quando o acharam, seu cadáver estava semidevorado pelos descomunais lagartos. Daí perdi a paciência e mudei de canal.

Eu não teria ficado tão irritado se na semana anterior não tivesse visto um documentário no Discovery sobre dragõe de Komodo (e outros depois), onde fiquei sabendo de seus hábitos, das pesquisas para antibióticos e de sua quase completa inofensividade. Uma das cenas era os pescadores da ilha pondo seus peixes a secar ao sol, um lagartão se aproximando sorrateiramente para tentar roubar um dos falecidos vertebrados marinhos e um bando de crianças gargalhantes e pululantes se divertindo espantando o bicho. Ataque a crianças? Putz, dá um passeio pelo seu bairro procurando que vai encontrar histórias de ataques de cachorros mais assustadores. O pesquisador inglês deve ter tido um enfarte de ficar subindo montanha e, como nosso amigo reptiliano é carniceiro - ele não tem medo de bactérias patogências, lembra? - deve ter aproveitado.

Demonizar dragões de Komodo pode parecer inofensivo, afinal as chances de um de nós dar de cara com um deles é mínima. Mas o que isso mostra do pensamento jornalístico de alguns anos pra cá é sintomático. Tudo tem que ser espetacular. Pesquisa é desnecessária, principalmente se for trazer resultados contrários ao que já se decidiu de antemão. E, principalmente, ensine o espectador a temer tudo que é diferente e ele não entende. Num mundo como o nosso, que está mudando cada vez mais rápido, isso ensina as pessoas que aprendem com a televisão a serem preconceituosas, ressentidas, fortemente identificadas com o pensamento da maioria e tementes ao pensamento desigual. O próprio Cabrini já experimentou na pele as consequências de tal tratamento pela imprensa. É como já dizia Nietszche, não combata monstros temendo tornar-se um deles. E se você olhar dentro do abismo, o abismo olhará de volta pra você.

3 comentários:

Anónimo disse...

Chato...

Anónimo disse...

Chego a pensar que havia sim uma terceira pessoa no caso Isabela. Pois com a novelização deste drama familiar por parte da mídia, e com o faturamento por ela obtido com o mesmo, não podemos descartar, que esta mídia, estaja "por trás" desta terceira pessoa.Fica muito mais barato "arranjar" um fato como êste, que produzir uma novela.
( um bom roteiro para um filme )

Anónimo disse...

Eu já li em algum lugar que a polícia queixava-se muito da imprensa porque até os anos 60 era muito comum que um jornal, vendo o interesse por um crime espalhafatoso diminuir, começava a estampar sempre a história de um "terceiro homem" na cena do crime. E essa prática era tão comum não só aqui que é a origem do título do filme clássico de Carol Reed.