novembro 16, 2008

Blogue Sem Lei VII

Os Profissionais, 1966, de Richard Brooks

Kennedy avisou que o preço da liberdade era a eterna vigilância, daí os americanos deram uma de vigilante e saíram pelo mundo corrigindo os governos que achassem errados. Os anos 60 viram o auge do intervencionismo americano e, sendo o faroeste à época ainda o grande terreno mitológico do subconsciente coletivo estadunidense, ele encarnou esse papel concretizando os sonhos do cidadão médio temente à Guerra Fria.

Foi durante essa década que mudou tudo que muitos caubóis pararam de trocar tiros entre eles e foram ao México ajudar na revolução fosse ela a juarista ou a zapatista. Como a primeira não era um levante liderado por um camponês radical e tinha como vilão uma nação imperialista européia, era a preferida para heróis idealistas e românticos. A do século XX, até por sua época, normalmente servia de pano de fundo para ianques desiludidos, que sabem que os bons tempos mitológicos já estão indo pelo ralo, ainda mais com toda a violência que aqueles latinos vestidos todos de sombrero, camisa e calça rudes e brancas cometiam contra eles mesmos.

Sturges mandou sete magníficos para ajudarem camponeses que mal vemos na fita. Peckinpah cruzou o Rio Grande com um regimento de retalhos costurados por Charlton Heston em um de seus melhores e mais obscuros filmes ("Juramento de vingança") e depois visitou também a revolução juarista, com o Bando Selvagem ("Meu ódio será sua herança"). E Richard Brooks enviou uma turma de mercenários que de sua vida em meio à jornada encontraram-se em selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada.

Lee Marvin, o estrategista e líder, Woody Strode, o versátil comando e Robert Ryan, tropeiro, são contratados por um magnata (que tem um trem particular como os CEOs de hoje têm um jato privado) para resgatar sua bela e jovem esposa (Claudia Cardinale!!! Gostosa!) do revolucionário mexicano Jesus Raza, que a raptou e exige 100 mil dólares para devolvê-la (um décimo do que o genérico do Bando Selvagem exigiu pelo netinho de John Wayne em Jake Grandão - v. blogue sem lei V. Um milhão de dólares em 1909 era uma quantia quase inimaginável; 100 mil dólares em 1916 deixava um sujeito rico). Os três fazem um pit stop para pagar a fiança e soltar uma figura indispensável depois de "Os canhões de Navarone", o especialista em explosivos, no caso Burt Lancaster, preso por ter sido pego com a mulher do próximo, mulherengo incorrigível que é.

Os quatro, além de suas especialidades, são todos craques no gatilho e na improvisação tática. A caminho de um México filmado na Califórnia com paisagens belissimamente fotografadas e esplendidamente digitalizadas em seu formato original cinemascope (panavision, na verdade), vão enfrentar uma série de aventuras rocambolescas, no melhor estilo de um seriado de aventuras, bem escritas e encenadas. Os mercenários são tão profissionais que são capazes de antecipar com precisão até os gestos de seus inimigos ("se ele nos saudar com um gesto amplo e pegar o chapéu com a mão esquerda, ocultando a mão da arma, teremos problemas").

Com tanta proficiência, fica a dúvida: por que sujeitos tão talentosos e qualificados estão tão deslocados quando a fita começa? Marvin tem um empreguinho demonstrando metralhadoras para compradores em vez de estar comandando uma unidade no exército - afinal em 1916 a Europa estava se esvaindo na I Guerra Mundial. Lancaster nem emprego parece ter e pula de cama em cama com seu famoso sorriso cínico picareta que não consegue disfarçar sua falta de objetivo além do prazer imediato revelando uma provável depressão. Robert Ryan é tão ligado a seus animais que parece pouco à vontade com outros humanos. Finalmente Strode parece ser o melhor ajustado, mas ainda assim é solitário e taciturno, por um motivo óbvio que o capitalista que os emprega esclarece de vez ao perguntar aos outros três se eles se importam em trabalhar com um crioulo.

Marvin e Lancaster inclusive já fizeram parte do bando de Raza e aparecem a seu lado numa velha manchete de jornal que Ralph Bellamy, o rico capitalista, tem pendurado na parede. Até estranham que o revolucionário tenha começado a raptar mulheres (Lancaster, incrédulo, pergunta: "o nosso Raza", deixando claro como os americanos enxergavam os estrangeiros que apoiavam). Mas o que permanece inexplicado é por que eles largaram esses guerrilheiros, já que a revolta prossegue, eles continuam admirando Raza (um maquiado Jack Palance) e ao que parece a brutalidade de seus métodos não os impressiona - quando durante sua missão eles vêem os rebeldes atacarem um trem e depois executarem a sangue-frio os soldados, Marvin e Lancaster explicam aos outros dois que aquilo não é nada comparado ao que o exército fez aos familiares e amigos daquele povo.

Então, por que eles largaram esse trabalho que aparentemente lhes trazia satisfação para se tornarem cínicos soldados da fortuna em empreguinhos?

Os quatro protagonistas do longa já passaram dos 40, apesar de estarem quase todos em excelente forma, com Lancaster e o cinquentão Strode se dando ao luxo de aparecerem sem camisa. O psicopata fronteiriço Robert Ryan parece estar beirando os 60. Suas únicas posses parecem ser suas habilidades e eles provavelmente já podem senti-las se esvanecendo lentamente. É hora de se tornarem profissionais, largar esse amadorismo, essa mania de querer ser o melhor em seu ramo apenas pelo prazer de ser o melhor. Hora de arrumar um emprego de verdade.

Esses homens durante décadas dedicaram-se de verdade a apenas um amor: serem os melhores. Cultivaram a técnica pela técnica, como cineastas que buscam o enquadramento perfeito e esquecem de contar uma história. Mesmo quando se juntaram ao bando de Raza, foi apenas porque era um bom lugar para desenvolver seus talentos. Até que chegaram ao limite e perceberam que seus melhores dias ficaram para trás. É a hora em que os músicos, atores e escritores que conhecemos fazem um concurso público, vão trabalhar nos negócios da família, ou arrumam uns trabalhos temporários. Alguns vão trabalhar em publicidade, o que seria mais ou menos o correspondente ao resgate da Claudia Cardinale.

Em "os demônios" Dostoievsky escrevia sobre um bando de pessoas dedicadas à busca de um vazio prazer estético, que os aliena da vida em redor. O mesmo acontece com os profissionais da fita de Richard Brooks. Atrás de uma coerência que dê sentido às suas existências, eles cultivaram um rígido código de honra do qual se orgulham, mas é que tão oco quanto eles, já que moralmente neutro; na verdade, essa norma de conduta é apenas um ritual que reforça seu sentimento de superioridade sobre o resto da humanidade.

Mas tudo isso é sub-sub-subtexto. Os quatro resgatam a mulher e enfrentam a pior parte da missão na volta. Perseguidos pelos guerrilheiros, eles descobrem que Claudia Cardinale não ama o velho porco capitalista e é apaixonada por Raza; ambos inventaram a história do resgate para financiar a revolução. Ainda assim eles seguem seu código de honra e sua palavra empenhada.

Entre os perseguidores dos profissionais está uma mulher com a patente de tenente e ex-amante de Lancaster, bem como de um monte de gente, como Marvin e Lancaster bem explicam. Ela não se acanha em banhar-se com os seios nus na frente de todo mundo (1). E quando os guerrilheiros estão perto demais, é seu ex-parceiro Lancaster que se oferece para detê-los ao provável custo de sua vida.

Provável, mas não é o que acontece, afinal de contas os mexicanos são um bando de camponeses descalços vestidos de pijamas brancos velhos e os profissionais são americanos treinadíssimos, afinal esta é uma fantasia da Guerra Fria. Lancaster dinamita um daqueles sempre convenientes desfiladeiros no meio do deserto que por algum motivo não podem ser contornados e derruba um por um, sobrando apenas Raza, ferido, e sua ex-amante, que ele é obrigado a mandar desta para melhor. A morte dela vai causar uma epifania em Lancaster e nos seus amigos profissionais, mas é claro que a garota não pode sobreviver - ela é uma guerrilheira, ela dá pra todo mundo e sequer é capaz de matar seu ex-parceiro quando tem a chance. Perceba, esses latinos podem dar algumas lições de vida, principalmente morrendo (até Peckinpah os usaria para tanto no pretensamente revisionista e contracultural "Meu ódio será sua herança"), já que não servem pra muito mais coisa.

Traídos pelo empregador, entregando um ex-companheiro sem nenhum motivo, afinal os mercenários resolvem quebrar seu código de honra e fazer um julgamento moral. Afinal, estamos já na segunda metade dos anos 60. Muitos e muitos críticos já relacionaram os profissionais do título ao profissionalismo da equipe que concatenou esse pequeno clássico do filme de aventura, que ele é um monumento ao profissionalismo de Hollywood, que é o profissionalismo do cinemão em sua melhor forma e coisas assim. Mas a nouvelle vague estava revolucionando a sétima arte e Leone já estava mudando o próprio bangue-bangue na Europa, como o bando de guerrilheiros de Raza. Os profissionais estavam cansados e cínicos e durante muito tempo viveram sem alma, perseguindo uma perfeição técnica e vazia, buscando apenas o sucesso de bilheteria e se curvando à vontade dos produtores. E essa garotada estrangeira estava dando lições de vida ao povo curtido de Los Angeles de que podia, talvez, haver um sentido naquilo tudo. Que podia se usar aquele talento pra tentar mudar o mundo.

Claudia Cardinale e Jack Palance vão embora juntos enquanto os mercenários sorriem em congraçamento, unidos agora por um código de honra E moral. O filme é ótimo. Funciona como fita de aventura, fantasia afirmativa da Guerra Fria, tem um toque de rebeldia chique pra atrair o público mais politizado da década e até algumas boas sacações existenciais sobre o conformismo exigido pela meia-idade. Mas é sintomático que o jornal pendurado na parede de Bellamy alardeie em sua manchete que Villa e Zapata entraram na cidade do México (com os assessores americanos ao lado). Vitória enganosa. A luta continua e sabe-se lá se e quando vai terminar. A partir do final dos anos 60 e durante a década de 70, o cinema americano achou que poderia se tornar uma indústria de autor. Apenas onze anos depois de "os profissionais" um longa de ação tão movimentado como este varreria os coroas amargurados em busca de um sentido e reinstauraria o império da perfeição técnica. E pouco importava se isso significasse alienação do mundo em redor, afinal a franquia "Guerra nas estrelas" seria virtualmente a primeira a vender não apenas uma mitologia, mas todo um universo próprio e escapista. E esse profissionalismo cinematográfico todo cobraria seu preço, devorando a alma de George Lucas no processo.

(1) Soldados de ambos os sexos banhando-se nus foi usado por Verhoeven em "Tropas estelares" para mostrar como a lavagem cerebral militarista dessexualiza - e, por conseguinte, rouba-os de sua essência vital - a garotada. A tenente de Richard Brooks não é assexuada, como é claramente explicado, mas sendo uma guerrilheira revolucionária, tem preocupações maiores do que ritualizar o sexo seguindo regras de decoro burguês (essa eu desenterrei dos anos 70, hein?).

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