novembro 24, 2008

Postagem 500

Esta é a 500a. postagem do ano. Coisa pra burro. Mais de uma por dia. Pra quem trabalha e faz frilas, só mesmo não tendo filhos. Pra celebrar essa marca absurda pralguém que não ganha nada com esse blogue, um artigo muito especial da série sobre faroestes:



Blogue sem Lei VIII - Os Brutos Também Amam

(Shane, 1953, de George Stevens)




Quando o homem era um caçador-coletor, catando vegetais, frutas e larvas que dessem mole e perseguindo animais comestíveis, sua mitologia estava viva, acontecia no aqui e agora. Os grupos humanos tinham morubixabas que estavam em direto contacto com os espíritos e deuses. Os pajés, para curar doentes, levantar maldições ou trazer boa sorte viajavam pelo mundo místico e disputavam as almas de seus pacientes com as entidades malignas em pessoa. Para quem vivia numa constante batalha de vida ou morte com suas presas e dependia da morte de outras criaturas para sua sobrevivência, com toda a carga psíquica que tal pensamento envolve, essa cosmogonia era a que melhor refletia seu mundo e portanto mais fazia sentido.


Mas o homem começou a arar a terra e cultivar seu próprio alimento. A comida passou a abundar, mas os antigos caçadores passaram a ter um papel predominantemente passivo, apenas esperando os grãos brotarem, colhendo-os e armazenando-os. A era heróica acabara. Sua mitologia, como sua vida então, passou a ser altamente organizada. Seus deuses viviam em um panteão hierarquizado, com tarefas e atributos bem definidos, e toda a cosmogonia era um fato passado. Não mais se vivia com os deuses, viva-se sob eles. Os grandes feitos e heróis pertenciam ao passado, a um passado remoto e inseguro, ao contrário do presente e do futuro previsível e, de preferência, imutável, continuando a trazer safras seguras e fartas.
Mas esse afastamento do homem da produção de seu alimento também o deixou com uma sensação de perda. O sentimento de culpa pela morte de outras criaturas foi recuperado pelo cristianismo, mas a emoção da caçada se perdeu. Com alimento abundando, a maioria das pessoas pôde ser desviada da labuta essencial para outros trabalhos - construção, comércio, pastoreio, letras, artes, até mesmo sacerdócio, já que os deuses não mais viviam entre nós, mas num lugar inatingível e distante e nossas súplicas quase não mais poderiam ser ouvidas por eles, necessitando de intermediários amplificadores, elaborados rituais, e ainda assim provavelmente os seres superiores se fariam de surdos. Essa separação do homem da criação de sua subsistência criou nele um sentimento de falta. Era o começo da alienação e da neurose, que Marx e Woody Allen tão bem explorariam.


No entanto, nem todo o mundo civilizou-se de uma vez. Até hoje existem ainda povos caçadores-coletores. Para esse pessoal, aquela turma que vivia dentro de cidades muradas, sedentária, usando aquelas roupinhas efeminadas e vivendo aquela vida boa e flácida, pareciam presas gordas, preguiçosas e fáceis. A história humana resume-se quase exclusivamente aos bárbaros assediando as culturas agrárias até estas sucumbirem à pressão. Uma vez dentro dos muros, os bárbaros se tornam os senhores e criam um código marcial, em que os nobres com habilidades guerreiras estão no topo, refletindo mesmo séculos depois, a conquista dos citadinos decadentos pelos vigorosos nômades. Esses conquistadores formarão as castas dos brâmanes, dos cavaleiros medievais e, por conseguinte, da nobreza européia; dos janízaros, dos samurais, dos mogóis... até que com a revolução industrial e o avanço tecnológico furioso a partir do Renascimento, ficou difícil competir com a burguesia urbana. Toda a habilidade nas artes da guerra era inútil frente ao esforço industrial de canhões, mosquetes e depois ainda por cima rifles, armas automáticas, metralhadoras, aviões e encouraçados.


E esses bichos poderosos todos se chocaram com toda ferocidade no século XX, em duas guerras atrozes. E, quando a segunda acabou e os soldados voltaram pro lar, muitos deles e o pessoal que ficou em casa começaram a ter uma estranha sensação: nostalgia dos tempos do conflito. O sentimento de estar vivendo em tempos importantes, de não saber como será o futuro, de fazer parte de um esforço pela sobrevivência, sentimento ajudado pela distância dos campos de batalha, láááááá em outros continentes, o que não acarretou destruição e sofrimento no fronte doméstico. Fitas como "Os melhores anos de nossas vidas" mostravam a decepção de combatentes que voltavam e tinham dificuldades em se ajustar às existências mansas e, em alguns casos, sem perspectivas. Já os bangue-bangues, o terreno mitológico americano por excelência, começaram a tomar a forma de elegias a tempos heróicos e violentos em seu crepúsculo, substituídos pela era dos lavradores e seus feitos não tão impressionantes assim.

Os semideuses de John Ford limparam o caminho para a chegada da civilização, pacificando a selvageria da fronteira e seguindo adiante em busca de novos desafios, mas o que aconteceu com eles quando bateram no Oceano Pacífico e descobriram que não havia um Valhalla à sua espera e que Clementine já tinha se casado com o irmão de Ethan Edwards? (Breve aqui uma postagem sobre "Rastros de ódio", pra quem não entendeu). O pistoleiro Shane ficou perambulando sem rumo até encontrar uma nova Martha, infelizmente também casada, e tenta se ajustar a uma nova vida de lavrador. O crepúsculo desse deus é a história de "Os brutos também amam", que tem no panteão dos faroestes mais ou menos o mesmo status místico que "Casablanca", sendo um favorito do povo que o viu nos cinemas quando moleque ou na Sessão da Tarde nos anos 70, quando esses longas antigos ainda passavam na Globo.



E essa história mitológica começa justamente com um garoto tentando viver sua fantasia de caçador, espreitando um majestoso Bambi contra um fundo de impressionantes montanhas. Ao mesmo tempo fica claro como tal cenário integra o homem à natureza e é ao mesmo tempo impositor de culpa, com o peso psicológico decorrente da idéia de abater tão magnífico animal. Infelizmente a Paramount está devendo uma edição especial do longa - a imponência das paisagens tem que ser adivinhada, já que as cores Technicolor - e da época dos 3 negativos - estão esmaecidas e o nível de detalhe muito baixo. Sendo um filme muito popular, suas matrizes estão cansadas de tantas cópias que geraram durante mais de meio século, e a digitalização parece ser do começo da era do DVD, quando os algoritmos de compressão eram bem menos eficientes do que hoje.


O garoto, Joey, é interpretado por Brandon deWilde, que parece saído de uma ilustração de Norman Rockwell - e esse é o seu grande, quase único talento dramático. Ele vê aquele óbvio pistoleiro chegando e os dois vão até o rancho do pai do mini-ianque, Van Heflin, que é casado com a quarentona Jean Arthur, que doze anos antes era a beleza de "Paraíso infernal" e na fita faz o papel de uma mulher de 30 anos gasta pela vida da fronteira, mas ainda atraente e com presença. Para Shane, aquela senhora simboliza uma existência sedentária e doméstica. E, para aquela mulher ainda com um corpo que se faz ouvir em sua cabeça, aquele aventureiro é a promessa de emoções fortes e violentas, com a intensidade daqueles que não sabem se vão voltar vivos amanhã.


Mas entre os pilares da civilização e da família nuclear está a monogamia. Jean Arthur não encorajará o estranho e o censurará quando o pegar ensinando o moleque a atirar. Shane começa aos poucos a usurpar o papel de Van Heflin como marido e pai, assim como o de colono. Os agricultores da área estão com problemas, já que o poderoso barão de gado da área cansou de suas cercas limitando seu gado e quer botar todo mundo pra fora. A chegada de Shane enche os pobres lavradores de esperança, depois que ele enfrenta alguns capangas no armazém-saloon do lugar, que nem de cidade pode ser chamado. O xerife mais próximo está a 100 quilômetros. Nenhum Wyatt Earp virá para atacar este Velho Clanton.


Principalmente porque George Stevens esclarece que este Velho Clanton é também Wyatt Earp. Como ele mesmo explica, os lavradores só estão naquela terra porque ele veio antes, pacificou-a, expulsou os índios e as feras e explorou-a, como reconhece o próprio Joe, pai. Ryker, o barão de gado, é a versão realista das fantasias conservadoras posteriores de John Wayne, o homem miserável que criou um império, como o Jake Grandão de dois artigos anteriores, ou o McClintock do terrivelmente anacrônico "Quando um homem é um homem". Essa guerra contra a pobreza e os elementos não transformou Ryker num magnata paternalista e bem-humorado, e sim num homem violento e que não suporta ser contrariado. Seus rituais de virilidade não são brigas cômicas, mas surras em grupo para intimidar os colonos.


E George Stevens dirige essas lutas com uma violência inaudita para a época. Com uma edição perfeita, os enquadramentos e movimentos dos atores e da câmera reforçam o impacto de cada golpe. Socos fazem os homens atravessarem salas inteiras antes de desabarem sobre mesas em outros aposentos. Hematomas continuam visíveis nos protagonistas da briga durante cenas dias e dias depois. Closes no rosto do pequeno Joe ao mesmo tempo assustado e apreciando a porradaria realçam a crueldade da cena. Os revólveres trovejam como relâmpagos lançados em fúria por Zeus. A Idade do Ferro pode ser a época da cosmogonia em ação, dos grandes feitos e dos grandes heróis, mas é a era em que reina a violência e não há justiça para os fracos. Em "Os brutos também amam" quem é alvejado não cerra o punho sobre o ferimento e cai lentamente - voa com o impacto do projétil e, apesar dos Mythbusters já terem provado que isso é cascata, inaugurou uma tendência no cinema que fez a fama de Peckinpah e dura até hoje.


Jack Palance, ainda assinando Walter Jack Palance, é o assassino profissional contratado pelo barão de gado. Transmitindo ameaça do alto de seu corpanzil e com seu rosto reconstituído após as queimaduras que sofreu pilotando bombardeiros na II Guerra, o descendendo de ucranianos é um pistoleiro gélido que monta e desmonta de seu cavalo com estudada elegância. Na verdade, Palance tinha medo de cavalos à época e para montar com tanta classe, foi projetado de trás para frente ele desmontando.


A violência não vai permitir que Shane pendure sua arma e tenha alguma esperança de conquistar o coração de Martha, perdão, Jean Arthur. O pistoleiro que tenta largar essa vida e é obrigado a voltar a fazer aquilo que faz melhor se tornaria talvez o clichê mais famoso do faroeste nos anos 60 e 70, à medida em que o próprio gênero fosse perdendo sua força e se tornando uma elegia a si mesmo, uma espécie de Woody Allen com tiros. Apesar de se poder traçar um lamento pelo fim de uma época romântica desde o mudo "Tumbleweeds", de William S. Hart, é "Os brutos também amam" que se tornaria a matriz de todas esssas fitas, a trama que seria homenageada, satirizada, imitada à exaustão. Filmes que originaram uma tendência costumam mostrar a idade e aqui o momento mais involuntariamente engraçado é quando Shane reaparece com sua "roupa de pistoleiro" e a sensação que o público moderno pós-Sérgio Leone é de que ele está indo para um baile de carnaval.


Todo o mundo que gosta de faroeste sabe o final deste filme, portanto não vou estragar a surpresa de ninguém contando que depois do tiroteio Shane vai embora. Ao contrário de Wyatt Earp no final de "Paixão dos fortes", ele não se vai cheio de idealismo e com a sensação de missão cumprida, mas amargurado por sua incapacidade em se adequar aos novos tempos. O pequeno Joey lamenta sua partida, mas o pistoleiro já cumpriu seu papel de ajudá-lo em seu rito de passagem. Os meninos das sociedades caçadoras-coletoras, quando admitidos na vida adulta, passavam por rituais onde eram tatuados, marcados, ou tinham prepúcios, lóbulos ou outros apêndices inúteis do corpo mutilados, ou mesmo eram escarificados. A idéia era de que a mudança não deveria ser apenas espiritual, o próprio corpo estaria para sempre mudado e não haveria volta para a infância. Essa idéia perdeu força com os agricultores, portanto é testemunhar aquele último dos titãs - não um deus, um titã, os precursores daqueles, mais violentos, irracionais e sem bons desígnios para a humanidade - enfrentar seus congêneres que vai levá-lo à idade adulta. Isso e aprender a usar uma arma, é claro.


Os cenários majestosos - um tanto menos impressionantes por ser o longa anterior ao cinemascope e pelas cores esmaecidas -, as ótimas interpretações, as cenas que se tornaram clássicas e repetidas à exaustão em imitações e sátiras, como a dos homens se juntando para limpar o toco de árvore, o garotinho tiete, o confronto final, com Shane dizendo que o tempo do barão do gado passara, este respondendo que o dos pistoleiros também e Shane retrucando que pelo menos ele sabe disso, Jean Arthur sentindo-se atraída pelo estranho, tudo isso viraria com o tempo referência para o faroeste. A época do caos pode ter acabado e a agricultura pode ter trazido a ordem, varrendo os titãs com seus Colt Walker e Colt Peacemaker, mas esta fita permanece como um marco inesquecível da mitologia e da cosmogonia que o cinema americano montou nas estepes da fronteira do oeste no século XIX.

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