Anteriormente: O Selvagem da Motocicleta
Eu perdi o primeiro Mad Max. Imagina, eu já era um pseudointelectual e pseudointelectual que se prezasse não ia ver uma fita com aquele cartaz rudimentar e uma frase de chamada com alguma coisa do tipo “se você estiver em perigo na estrada, reze para que Mad Max esteja por perto”. Numa época cheia de filmes - e séries - de batidas de carro (a franquia “agarre-me se puderes”, os seriados “os gatões” e “xerife lobo”) celebrando o automóvel e tiras vigilantes atirando em hippies, essa propaganda parecia o epíteto do anti-intelectualismo fascistoide de filme de ação americano.
Porém calhou de alguns anos depois eu estar andando a esmo em Copacabana (minto, pretendia encontrar “acidentalmente” uma menina de quem estava a fim, recurso que acabou funcionando na semana seguinte, embora nunca tenha pego a moça; tenho amigos que já chegaram ao cúmulo de acordar sábado às 5 da manhã pra correr no calçadão do Leblon com a mesma pérfida intenção de dar de cara coincidentemente com a vivente do sexo oposto) e, um tanto melancólico por meu intento não ter tido êxito, passei em frente a um cinema (o saudoso Rian, bem na Atlântica) exibindo o segundo filme da franquia. Começando a sessão naquele momento, acabei resolvendo entrar, na falta do que fazer em casa. E, naquela sala escura tive uma visão inesquecível do futuro. O futuro do cinema.
Sérgio Leone reduziu o bangue-bangue a uma trama básica que deixava claramente à mostra sua estrutura mitológica, realçada pela ritualização da ação. George Miller, um médico australiano que gostava de cinema, substituiu isso tudo por um fetichismo escandalosamente sexual - Mad Max 2 foi o primeiro longa comercial a exibir vilões em roupas de couro de clara inspiração sadomasoquista. Sem contar, é claro, os planos luxuriosos de automóveis, motores roncando alto e batidas de carro, com as inclusas e consequentes mutilações (qualquer psicólogo de botequim pode relacionar o treinamento em medicina de Miller, cortando e costurando corpos, com essa fascinação por carnificina, com metal, carne e ossos se rasgando e quebrando).
Com mais grana do que pro filme original e o know-how australiano forjado em road movies de exploração (1), Miller e seu time de dublês encenam inacreditáveis cenas de perseguição em belíssimos planos no desoladíssimo outback australiano, que fazem as higways americanas parecer o auge da civilização e cria um dos mais convincentes cenários pós-apocalípticos já postos em película. Não há menção à família ou ao passado de Mad Max nesta fita. Quem perdeu a primeira não se perde nesta (como eu), até porque, como já dito, o enredo é reduzido ao essencial.
Como nos filmes de Leone não há romances para distrair. Uma belíssima australiana (tão bela que mais tarde seria Bond Girl) aparece, troca poucas palavras e olhares. E só. Sua principal cena é uma morte agoniante durante a perseguição climática, para realçar a crueldade da história. A Austrália depois do fim do mundo não é uma terra para fracos: a única criança da fita é uma besta-fera desprovida de fala mas extremamente competente com um afiado bumerangue assassino; os sujeitos que conseguiram extrair petróleo e criar um vilarejo rudimentar (indisfarçavelmente parecido com um forte apache cercado por índios) são tão inclementes quanto os vilões psicopatas sexualmente pervertidos e o próprio herói.
Seco, perverso, fetichista, com abundantes cenas de violenta ação filmadas com extrema competência num cenário tão fabulosamente minimalista quanto o enredo, Mad Max 2 levava a outros níveis a brutalidade na sétima arte. Essa redução ao mínimo levaria a incontáveis imitações, mas nenhuma com a competência de George Miller e seu time de dublês. Nenhuma capaz de destilar tanta agressividade. Quando tempos depois consegui encontrar outros pseudointelectuais que haviam visto o longa, a opinião foi unânime: você saía do cinema com vontade de quebrar alguma coisa. É sério, o blogueiro jura que saiu do Rian e ficou olhando tantalizado para as vitrines das lojas fechadas de Copacabana (era um tempo distante em que lojas fechavam nos fins de semana).
Mad Max 2 mudaria tanto as regras do jogo que em pouco tempo o gênero chamado de “aventura” passaria a ser conhecido simplesmente como “filme de ação”. Não haveria Rambo 2, Comando para Matar, Predador, Exterminador do Futuro e toda aquela pancadaria interminável dos anos 80 sem o copioso jorro de adrenalina que aquele médico australiano despejou nas telas. Raios, não haveria nem o Michael Bay e seus Transformers, uma versão infantilizada daquele fetichismo sexual por carros e batidas, uma consequência típica do cinema americano ultracaro e megaproduzido. Dirty Harry era uma moça perto de Mad Max - que podia não ser um frasista tão brilhante quanto o vigilante de “make my day”, mas tinha um autêntico psicopata interpretando o papel, pelo menos.
(1) Duvida? Confira este documentário.
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